Alta do combustível deixa classe média sem carros de aplicativo

Da Folha de SP
Foto: Allan White/Ilustração

O dia a dia de Thiago Alves, 20 anos, estudante de biologia na UnB (Universidade de Brasília), não tem sido fácil. A capital federal costuma ser um local difícil para quem anda a pé: o plano piloto, onde fica o centro político do país, é distante dezenas de quilômetros das cidades-satélite, onde mora a maioria da população do Distrito Federal.

Não há metrô ou trem ligando todas as cidades entre si e ao plano. A malha de ônibus urbano é capenga, ciclovias são exceção. Só quem tem carro consegue se deslocar com facilidade.

Thiago não tem carro: estuda no plano, mora em uma cidade-satélite, Samambaia, e trabalha em outra, Águas Claras. Os carros por aplicativo sempre foram uma alternativa acessível de deslocamento. “Quando estava atrasado ou a distância era muito grande, chamava um carro, que chegava entre dois e cinco minutos”, diz o estudante.

“Mas agora fico mais de 20 minutos pedindo um carro e não consigo. Já cheguei a desistir de compromissos, depois de ficar pronto e não conseguir embarcar. Agora, se estou atrasado, chamo o carro e vou direto para a parada [de ônibus], para ver o que chega primeiro”.

O drama de Thiago tem sido cada vez mais comum nas grandes cidades depois do aumento dos combustíveis. Motoristas de app começam a escolher corridas, deixando de lado trechos mais rápidos e baratos. Se for em horário de pico, abandonam a demanda por rotas com maior chance de engarrafamento –daí o cancelamento sucessivo.

Só este ano, a Petrobras aumentou o preço da gasolina em 51%, enquanto o do diesel subiu 38%. Entre 29 de agosto e 4 de setembro, o valor máximo da gasolina encontrado pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) no país foi de R$ 7,199 por litro, enquanto o do etanol chegou a R$ 6,999. O pico do diesel no período foi de R$ 6,490 por litro.

A classe média, que vem voltando ao trabalho presencial, fica emparedada: quem tem carro, quer usar o aplicativo para economizar com o combustível e diminuir custos com estacionamento. Quem não tem, volta a ficar refém do transporte público, que oferece maior risco de contaminação.

“Os carros por aplicativo podem ser um ótimo complemento ao transporte público, mas precisam ser regulados”, diz Cristina Albuquerque, gerente de mobilidade urbana do instituto de pesquisas WRI Brasil. Em rotas com ampla oferta de transporte público, diz ela, a tarifa do carro por app poderia ser um pouco mais cara do que em trechos onde há escassez de ônibus, trens e metrô.

Da mesma maneira, os impostos pagos por essas empresas, assim como os recursos obtidos com o estacionamento rotativo (antiga “Zona Azul” em São Paulo), poderiam ser direcionados a um fundo de mobilidade urbana, a fim de melhorar a qualidade do transporte público.

“Quanto menos gente usa o transporte coletivo, mais ele se deprecia, uma vez que os custos de manutenção são divididos pela quantidade de passageiros”, afirma. “A situação já estava ruim antes da pandemia, e piorou com a diminuição do fluxo de passageiros”.

Na cidade de São Paulo, praticamente um em cada quatro dos 12,3 milhões de habitantes eram transportados diariamente, em média, nos ônibus em 2019. Agora são 2,2 milhões, segundo a SPTrans.

No metrô, a demanda caiu pela metade –eram 3,7 milhões de passageiros diários.

A bancária Juliana Morato Treviso, 47 anos, costumava pegar carro por app para ir da Vila Romana (zona oeste de São Paulo), onde mora, até o metrô da Vila Madalena, de onde seguia para a av. Paulista (região central), onde trabalha. “Era muito mais fácil e barato do que pegar o carro”, diz ela que, desde a pandemia está trabalhando de casa.

No mês passado, quando voltou a usar o carro por aplicativo, estranhou a demora e os cancelamentos. “Precisava voltar de uma consulta nos Jardins (zona oeste), eram quase 21h, quando três motoristas cancelaram a corrida”, diz Juliana. Em outra ocasião, o preço das corridas dobrou em relação ao habitual: de R$ 30 para R$ 60, contando ida e volta.

“Os próprios motoristas reclamam do preço alto do combustível e dizem que, dependendo da distância que estão do passageiro e do trecho da corrida, não compensa o deslocamento e eles cancelam”, diz ela, que só pega o carro próprio quando sai com a família.

Já o cabeleireiro Rodrigo Moraes Souza, 31 anos, não tem essa opção. “Não tenho carro, sempre resolvi bem a locomoção com transporte público ou por aplicativo. Manter um carro é quase tão caro quanto um filho”, diz. Mas o deslocamento tem sido cada vez mais complicado.

“Está difícil conseguir um carro e o preço subiu muito: um trecho que eu costumava pagar entre R$ 20 e R$ 25, agora pago R$ 70”, afirma, referindo-se a uma corrida da zona norte à zona oeste de São Paulo. “Agora tento completar parte da viagem com carona ou ônibus”.

Ao mesmo tempo, segundo Souza, o serviço piorou: os carros estão mais sujos e a demora para ver sua corrida aceita subiu de 30 segundos para 15 minutos. “Até entendo que não tenha mais mimos, como bala e água, mas pela limpeza eles deveriam zelar”, diz ele.

EMPRESAS REAJUSTAM VALORES POR ALTA DOS COMBUSTÍVEIS

Uber e 99 afirmam que a alta demanda por viagens vem se acentuando nas últimas semanas, conforme o avanço da vacinação e a reabertura do comércio em todo o país. Nesta sexta-feira (10), elas anunciaram reajustes devido ao preço dos combustíveis. Enquanto a 99 elevou tarifas, a Uber informou que aumentou apenas o repasse aos motoristas.

Na 99, o aumento vai de 10% a 25% e vale para mais de 20 regiões metropolitanas, incluindo São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Salvador.

“Os constantes reajustes dos combustíveis impactaram muito negativamente os serviços de transporte por aplicativo”, afirmou a 99. “O aumento revisa os ganhos dos motoristas parceiros e foi definido levando em consideração a manutenção do equilíbrio da plataforma”.

No caso da Uber, a empresa afirma que não haverá mudança na tarifa para o usuário, apenas no repasse para o motorista. Os reajustes valem para todas as cidades brasileiras, mas o índice depende do horário e do local em que o motorista atua. No caso da região metropolitana de São Paulo, por exemplo, o aumento no repasse será de até 35% para viagens UberX, a categoria mais popular do aplicativo.

Por meio da sua assessoria de imprensa, a Uber afirmou que “entende a insatisfação causada pelos impactos [do aumento do preço dos combustíveis] em todo o setor produtivo e, por isso, tem intensificado esforços para ajudar os motoristas parceiros a reduzirem seus gastos”.

As empresas dizem ainda que os motoristas têm autonomia para escolher quais corridas desejam fazer e, assim como os passageiros, têm a liberdade de cancelar viagens —as companhias, porém, têm um limite de corridas que podem ser canceladas sem ônus tanto para os passageiros quanto para os motoristas.

Mas o que interessa mesmo para elas é encontrar mais trabalhadores, porque falta motorista na praça. O Uber lançou um programa em que quem indica um novo colega para a função é recompensado em dinheiro, quando o indicado atinge certo número de viagens. Em São Paulo, por exemplo, uma indicação concluída pode gerar recompensa de até R$ 750.

A rival 99 admite o impasse: tem mais pedidos de corrida do que motoristas. O número de motoristas continua o mesmo há um ano, cerca de 750 mil, mas o de viagens cresce.

Pesquisa Datafolha para a 99, realizada entre abril e maio em seis regiões metropolitanas, aponta que o ônibus, meio de transporte usado por 71% da classe C, já tem como principal rival os apps de transporte, meio usado por 65% dessa classe social. Segundo o levantamento, 75% da classe C pretendem aumentar ou manter a frequência do uso de carros por aplicativo.

Em agosto, a 99 lançou um plano para tentar incentivar mais motoristas a assumir o volante e não desistir do trabalho, que envolve desde taxa zero alguns dias do mês (quando o valor ganho fica todo para o motorista), até agilizar o pagamento em casos de calote do passageiro.

“Cerca de 20 milhões de passageiros escolhem usar a 99 todos os meses para se locomover, a maior parte delas da classe C”, diz Lívia Pozzi, diretora de operações da 99.

Segundo ela, a empresa já fez parceria com a Shell para oferecer desconto de 10% na postos da rede. “Mas a escala de aumento que temos visto é muito alta”, diz.

O motorista Alexander Victor dos Santos Lopes decidiu jogar a toalha. Trabalhou menos de seis meses, este ano, como motorista da 99 e da Uber. De dia, trabalhava como separador na área de logística, e nas horas de folga e fins de semana, como motorista de aplicativo, com um carro alugado.

“É um pouco ilusório o ganho”, diz. “De R$ 5.000 que você ganha ao mês com as corridas, R$ 2.000 são de combustível, quase R$ 2.000 de aluguel. O que sobra é menos que um salário mínimo”.

“Estava trocando figurinha: trabalhava demais, seis, sete horas para ter um lucro de R$ 30 ao fim do dia. Só me trazia cansaço e muito estresse”, diz Lopes, que hoje voltou a ser motorista, mas de uma empresa de eventos.

As festas, segundo ele, estão bombando. “O pessoal está tirando o atraso”.

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