Tragédia que deixou mais de 734 mil mortos em 20 anos no Brasil, a maioria jovens até 29 anos, os acidentes de trânsito despedaçam famílias e sobrecarregam a saúde pública. No mesmo período, o SUS desembolsou R$ 5,3 bilhões em procedimentos médicos relacionados a acidentes nas ruas e estradas. Especialistas temem piora no cenário com alterações no Código de Trânsito Brasileiro propostas por Bolsonaro.
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Foto: PRF Paraná – Ilustração |
País tem uma morte a cada 15 minutos
Mães perdem filhos, filhos perdem pais. São milhares as histórias atravessadas pela epidemia de mortes no trânsito que o Brasil, há décadas, vive e não tem sido capaz de controlar. A cada 15 minutos, em média, uma morte é registrada nas ruas e estradas do país. Em 20 anos, foram 734.938 óbitos, segundo levantamento do GLOBO a partir de dados públicos do Ministério da Saúde — número superior à população de nove capitais, como Vitória, Cuiabá e Florianópolis.
Além das milhares de vidas interrompidas e das marcas trágicas deixadas em seus sobreviventes, os acidentes sobrecarregam a saúde pública. Entre 1998 e 2018, o país desembolsou R$ 5,3 bilhões, corrigidos pela inflação, em 2,8 milhões de procedimentos médicos relacionados ao trânsito, cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Um levantamento do Conselho Federal de Medicina estima que esses acidentes geram mais de 160 mil internações por ano.
Para especialistas ouvidos pelo GLOBO, o cenário deve piorar, com mais acidentes, mortes e gastos públicos, se medidas propostas pelo presidente Jair Bolsonaro que alteram o Código de Trânsito Brasileiro avançarem no Congresso. Entre elas, o aumento de 20 para 40 pontos do limite para o motorista infrator perder a carteira.
— Todos os dias temos o equivalente a um avião com cem passageiros caindo — resume Rodolfo Rizzoto, coordenador do programa SOS Estradas, que lembra o impacto gerado na Previdência:
— Falta máquina de calcular aos governantes. Se você fizer a conta dos benefícios de se combater os acidentes no trânsito, vai ver que para o governo é um excelente negócio.
Mais letal que armas
A proporção de mortes no trânsito é comparável a de homicídios. Também em 20 anos, 726,6 mil pessoas foram assassinadas por arma de fogo.
— Se nós não fizermos uma ação coordenada e planejada, não vamos mudar a situação. Não é tirando radar que se resolve, mas aumentando a fiscalização. O essencial está no comportamento do motorista. O trânsito nunca foi tratado como tema de governo e está sendo politizado — avalia José Aurelio Ramalho, do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV).
Membro da Comissão de Viação e Transporte da Câmara e autor da Lei Seca, o deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ) afirma que para reduzir os índices de acidentes de trânsito é preciso combater as causas, que vão além da imprudência:
— É preciso olhar região por região. Aqui os acidentes são provocados pelo traçado errado de uma rodovia? É o motociclista que não usa capacete? É a falta de sinalização? Então vamos buscar os responsáveis pela rodovia, educar o motociclista, cobrar a sinalização.
O perito criminal Rodrigo Kleinübing, especialista em acidentes de trânsito, pondera que as estatísticas oficiais estão aquém da realidade e que o total de mortos é ainda maior. Os dados disponíveis não consideram em todo o país óbitos ocorridos até 30 dias após os acidentes, como é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e a maior parte dos estados contabilizam apenas mortes imediatas.
— A realidade fica em torno de 60 mil mortes por ano no trânsito. Vivemos uma epidemia — conclui Kleinübing. — E a maioria é jovem. Olha o tamanho do problema que temos. As pessoas não estão olhando para as estatísticas.
A morte do professor universitário Orlando de Oliveira Borges é uma das que ficaram de fora das estatísticas. Sua rotina incluía a passagem pela BR-393, que liga Volta Redonda, no Sul Fluminense, até a BR-040 (Rio-Juiz de Fora), na altura de Três Rios, já na Região Serrana. A estrada é considerada uma das mais perigosas do estado. Em 2005, à época com 38 anos, o professor despencou de uma ponte, na altura de Volta Redonda. Desde então, foram dois anos em coma e mais seis vivendo em uma cama, sem poder se movimentar, até morrer.
— À época, testemunhas contaram que ele foi fechado por um caminhão. Depois, disseram que um carro havia batido no do meu pai, mas esse carro nunca apareceu. Ele era prudente ao dirigir — conta o filho de Orlando, o artista visual Pedro Borges, de 32 anos.
Geração perdida: jovem é a principal vítima
Quase 40% dos mortos no trânsito têm até 29 anos. São vítimas como a universitária Mariana Paranhos, de 22 anos, atropelada no Centro do Rio. Nove anos depois do acidente, o coração da funcionária pública Cibele Paranhos, de 61 anos, sua mãe, ainda aperta ao passar pela Presidente Vagas. O acidente aconteceu numa segunda-feira após o Dia das Mães. Mariana havia saído mais cedo da faculdade, onde estudava Administração, para comprar o bolo de aniversário da avó, que hoje tem 89 anos.
O acidente que matou sua filha única, aconteceu a cem metros do prédio onde Cibele trabalha até hoje. Para chegar ao emprego, a funcionária pública é obrigada a passar pelo local, que a transporta para o 5 de maio de 2011.
— No dia da morte de minha filha eu morri junto. Morri porque precisei nascer novamente, crescer numa nova realidade, ter de aprender a viver sem ela. As vezes me pergunto: já passou tanto tempo e por que continuo chorando? — diz Cibele.
As maiores vítimas fatais, em 20 anos, foram os pedestres (24,7% do total), os mais vulneráveis nas vias, mas eles têm sido substituídos rapidamente pelos motociclistas no topo do ranking de óbitos, à medida que o meio de transporte se popularizou no Brasil. A frota de motocicletas quase triplicou em 13 anos.
O tatuador Michael D’Agostini, de 27 anos, associa motocicleta a risco. Ele lembra que foi em um acidente com uma delas que seu irmão morreu há 14 anos. Washington D’Agostini, de 23 anos, caiu em um buraco no viaduto sobre a Rodovia Presidente Dutra, na Baixada Fluminense, e perdeu o controle do veículo. Lançado da moto, bateu com a cabeça.
— No caso dele, não foi imprudência, mas é o que mais mata motociclistas. Se o motorista não for prudente, a violência não acabará — diz Michael, que meses depois perdeu um primo em outro acidente com uma moto.
Quando o trânsito mata mais que assassinatos
Em sete estados brasileiros, o trânsito matou mais, em números absolutos, que os homicídios entre 1998 e 2017. É o caso de Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Piauí e Tocantins.
Um estudo do Observatório Nacional de Segurança Viária chegou a um número ainda maior, de 15 estados, ao comparar taxas de homicídios para cada 100 mil habitantes e o índice de mortes no trânsito em relação à fronta de veículos, no período de 2011 a 2015.
Em Santa Catarina, as mortes relacionadas ao trânsito chegam a representar o triplo dos assassinatos. Foram 38,7 mil contra 14,3 mil homicídios em 20 anos. A tragédia do trânsito tem impacto direto nos hospitais públicos. O diretor do Hospital Regional de São José, na Grande Florianópolis, Marcelo Moreira, conta que por dia a unidade, às margens da BR-101, recebe 15 pacientes com fraturas, a maioria jovens motociclistas, que acabam submetidos a cirurgias e ficam internados por até sete dias.
— Um paciente custa mais de R$ 10 mil durante uma internação. É um gasto elevadíssimo — relata.
Projeto de Bolsonaro pode aumentar risco nas estradas
Enquanto o país convive com uma epidemia de mortes no trânsito, o governo Bolsonaro enviou ao Congresso um projeto de lei que, se aprovado, flexibilizará multas e exigências a motoristas. Uma das mudanças mais polêmicas pode se transformar em uma bomba-relógio nas estradas: o fim do exame toxicológico para motoristas profissionais, como caminhoneiros e motoristas de ônibus.
Um levantamento do SOS Estradas, com base em dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF), aponta que houve redução de 34% nos acidentes envolvendo caminhões nas estradas federais do país, após a obrigatoriedade do exame toxicológico, instituída em 2015.
ACIDENTES NAS ESTRADAS FEDERAIS
Caminhões
2015 – 37,4 mil
2017 – 24,5 mil
Variação: -34%
Ônibus
2015 – 5,6 mil
2017 – 3,1 mil
Variação: -45%
— Nas estradas as mortes estão diretamente ligadas a caminhoneiros que acabam trabalhando mais do que deveriam e usam substâncias. O exame é um avanço importante — diz o perito criminal Rodrigo Kleinübing, que complementa:
— Mas a questão da velocidade é a que mais impacta. Se aprovar qualquer medida em que se alivia a penalidade para excesso de velocidade, com pontuação na carteira ou redução de radares, o governo vai assinar o atestado de óbito de milhares de pessoas.
Bolsonaro já ordenou o cancelamento da instalação de 8 mil radares em rodovias federais. Como justificativa, diz que existe uma indústria da multa. Porém, não há estatística unificada de quanto se arrecada no país e do que é feito com o dinheiro. O Denatran diz que não dispõe de dados sobre as multas aplicadas pelos estados.
— Para cada multa aplicada, dez mil não são. Essa tal indústria da multa é ineficiente. O radar está ali para ajudar a sociedade. Quem vai ser prejudicado é quem estiver fora da lei. O gasto com saúde é maior. A conta não fecha — diz José Aurelio Ramalho do ONSV.
Nas ruas, motociclistas e crianças mais expostos
O projeto de Bolsonaro pode tornar as vias ainda mais perigosas para quem mais morre hoje no trânsito. O governo pretende tornar mais branda a multa para motociclistas que usam capacetes sem viseira ou óculos de proteção (de gravíssima para média) e transportam mercadorias em desacordo com as normas (de grave para média). No primeiro caso, a lei prevê a suspensão do direito de dirigir, o que também será suprimido se o projeto for aprovado.
Em 2017, os motociclistas representaram 34% das vítimas fatais. As mortes são mais comuns no Norte e no Nordeste.
Eles também já são hoje as vítimas de trânsito que mais geram despesas ao SUS, representaram 55% do gasto em 2018.
Impacto dos acidentes
Participação das ocorrências envolvendo motociclistas nos gastos do SUS
2018: 55,74%
2007: 34,54%
1998: 14,28%
Presidente da Federação de Motociclistas do Estado do Rio, Humberto Montenegro diz que as grandes vítimas são jovens de 18 a 23 anos. E faz um alerta em relação aos ciclomotores, que incluem as “cinquentinhas”. No início do mês, o governo publicou uma resolução que permite, por um ano, obter a autorização para dirigi-los sem fazer aulas antes. Só em 2018, o Seguro DPVAT pagou 3.457 indenizações a vítimas de acidentes envolvendo esse tipo de veículo. A maior parte ficou com invalidez permanente.
— Quando falamos das cinquentinhas o risco é ainda maior. São frágeis, inseguras. Em geral, quem guia esses modelos são os jovens, muitos sem conhecimento de leis de trânsito — diz Montenegro.
Outra proposta que pode ter impacto principalmente nos espaços urbanos é o fim da multa para quem não transportar crianças em cadeirinhas adaptadas, que passa a ser substituída por uma advertência. Segundo a OMS, o equipamento reduz as mortes em até 60%.
O Globo