Do Mobilize Brasil
Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil
O médico infectologista Jamal Suleiman, do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, vê com certo ceticismo as adaptações que estão sendo propostas para adequar os ônibus e trens ao chamado novo normal. Nesta entrevista, concedida por telefone, o especialista avisa que outras pandemias virão – em função por exemplo dos desequilíbrios ambientais – e recomenda que as autoridades promovam melhorias no transporte público, de forma que os usuários tenham mais conforto e segurança, e que possam manter o distanciamento recomendado. A pandemia, diz Suleiman, apenas revelou a baixíssima qualidade dos serviços.
Várias empresas estão buscando soluções de desinfecção para evitar a transmissão de vírus no transporte público. Qual seria o caminho? Reduzir em um terço a capacidade no transporte para que as pessoas possam manter o afastamento necessário, ou é possível, utilizando ferramentas de sanitização, ter uma lotação um pouco maior?
Muitas destas medidas de sanitização que estão sendo colocadas vêm, não para garantir o melhor, que é manter o distanciamento, mas para outros fins. Na verdade, desenvolvem várias tecnologias para manter as pessoas no desconforto, nos ônibus, nos trens cheios. Claro, há tecnologias que são fundamentais para minimizar o impacto da pandemia: vamos pensar em um ambiente fechado, por exemplo, uma aeronave. Dentro dessa nave, a renovação do ar ocorre pela passagem do ar por determinados filtros. Mas, mesmo nesse caso, se há alguém viajando que tem uma doença de transmissão respiratória – e vamos usar o sarampo como modelo -, nenhuma unidade de vigilância em saúde do planeta vai deixar de buscar todas as pessoas que eventualmente estiveram nesse avião a uma distância inferior a um metro e meio.
Entendo. Não há sistema que permita, digamos, a sucção da mínima partícula emitida pela boca ou nariz de alguém que esteja contaminado pelo vírus?
Vou tomar como exemplo o meu hospital, que tem enfermarias com pressão negativa, que minimizam os contágios. Eu não creio que se possa transformar o ônibus em uma unidade hospitalar. Isso não faz faz sentido. A estratégia mais adequada seria a de melhorar o transporte público, garantindo que as pessoas viajem com conforto em um espaço razoável. Mas ninguém fala dessa possibilidade. Então, parece-me que a proposta é continuar mantendo a “lata de sardinhas”, e se coloca ali algo para sanitizar, um ar-condicionado que filtra etc. Não, o que devemos pensar é que esta agora é apenas a primeira pandemia do século 21. E virão outras, não há dúvida. Veja, eu não sou o Al Gore [ecologista e vice-presidente dos Estados Unidos no governo Bill Clinton, de 1993 a 2001], nem estou retomando o discurso dele, mas há no mundo inteiro uma mudança radical com as intervenções no meio ambiente, o que vai trazer outras zoonoses, como é o caso do coronavírus. Então vamos vivenciar a passagem de cada novo agente infeccioso causando um determinado tipo de situação epidêmica. Esta agora, inclusive, é a terceira. Nós já tivemos Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e agora a Covid. As outras duas ficaram restritas espacialmente, mas todas são coronavírus. E temos também o Ebola, na África, que não avançou porque ocorreu em uma região com pouco fluxo de viagens e não atingiu longas distâncias. Então, o que seria eficaz? Quando ouço dizer que ônibus em movimento com janelas abertas resolve o problema, pergunto: qual a transmissão agora, a da tuberculose? O metrô de Nova York também está tentando desenvolver estratégias para a renovação do ar, mas, será eficiente? Como sair disso? Eu diria com políticas públicas, oferecendo um transporte de qualidade, mas aqui já não estamos falando de uma ação médica, mas de políticas públicas.
Quer dizer, a pandemia veio potencializar um problema que já existia: o transporte sempre trabalhou com a ideia de colocar muita gente em uma área pequena, algo desumano que agora se revela pela pandemia, mas que será impraticável ao longo do século 21. É isso que você está afirmando?
Exatamente: o rei está nu! Gosto muito dessa analogia. Veja o caso de São Paulo, uma cidade imensa mas onde várias áreas não dispõem de transporte público, são absolutamente inacessíveis. Como é feito o transporte das populações da periferia para o centro, para os centros econômicos? Durante um período estive trabalhando com minha esposa em um bairro da zona sul da capital, próximo à região da Berrini (centro empresarial da capital paulista). Nós tínhamos que avaliar o tempo que as pessoas levavam no transporte e em quais condições isso era feito. Eu perguntava de onde as pessoas vinham, e o número de residentes na zona leste que chegavam àquele extremo sul da cidade era enorme, um absurdo! Detalhe: nenhum meio de transporte em São Paulo faz a ligação direta leste-sul: é preciso fazer várias baldeações. E as pessoas vêm nessas latas de sardinha, levando duas horas de viagem. Então, essa gente já chega exausta para o trabalho, para outras atividades.
No final de agosto a reportagem do Mobilize circulou pelos trens da CPTM e do Metrô. Notamos que não havia quase nenhuma informação, nenhuma orientação aos passageiros para que mantivessem o distanciamento. Em uma das saídas, em um sábado, os trens do metrô lotaram, e estavam repletos de vendedores ambulantes apregoando seus produtos aos berros, bem próximos das pessoas. Tivemos uma sensação estranha, que talvez explique porque as pessoas estão evitando o transporte público.
Eu também vivi essa mesma experiência. Sempre andei de transporte público, porque é mais fácil para ir a alguns lugares em São Paulo e também porque adoro ver a cidade do alto, da janela do ônibus. Mas, outro dia, estava na plataforma do metrô e um homem, sem máscara, veio me perguntar ou pedir alguma coisa, e me apavorei. Você sabe, trabalho no Emílio Ribas e, mesmo estando num hospital, não tenho sentido medo. Devo reconhecer que aquela foi a primeira vez que senti medo. Então, insisto: todas essas estratégias que foram citadas, muitas não devem ser desqualificadas, claro, mas elas não podem servir de “muleta” aos gestores do transporte para não tomarem a atitude mais razoável, que é evitar a lotação.
Mas o senhor poderia comentar algumas dessas estratégias que os fabricantes têm divulgado…
Por exemplo, o tapete sanitizante: há uma grande discussão sobre a eficácia desse procedimento na desinfecção ambiental, digo em área pública, porque esta doença [a covid-19] não tem transmissão pelos sapatos. Então, a validade desse processo é altamente discutível. Já a filtração do ar é uma medida positiva porque tem impactos na redução da propagação, desde que associada a outras medidas. É como o uso da máscara: isolado, não funciona; é necessário que seja adotado junto com o distanciamento social. Alguém põe uma máscara de tecido e fica colado a outra pessoa… isso não funciona.
Sobre o vírus, especificamente, uma dúvida: independente do que façamos ou deixemos de fazer, há uma dinâmica própria desse microorganismo, algo que o faça crescer, se recolher?
Não. O que faz sentido, o que faz diminuir a incidência da infecção, são os procedimentos que a gente toma de recolhimento. Quando fazemos quarentena, reduzimos a chance de se expor; porque o vírus só infecta quando encontra alguém, já que ele não é uma estrutura viva. E se não encontra uma estrutura viva, ele encerra o seu período. A circulação está diretamente relacionada com esse avanço. O mais correto a se fazer é colocar a estratégia de isolamento ao lado de outras estratégias, principalmente a de criar métodos de barreira; e exatamente aí é que entra o papel da máscara. Explico: a maior parte das pessoas é portadora assintomática do vírus. De outro modo, quando as pessoas são sintomáticas, fica fácil, aí a providência é se recolher. Mas temos uma fase, pré-sintomática, em que há grande concentração de vírus dentro da nasofaringe, e a pessoa não se dá conta de que está doente. E a máscara visa a justamente interromper esse processo de transmissão.
E qual máscara é a mais indicada para se usar?
Diria o seguinte: qualquer máscara é melhor do que nenhuma. A esta altura da pandemia, é fundamental que a gente tente se preservar ao máximo. Claro, se você tiver uma N95 (máscara de utilização hospitalar), apesar de mais cara, é uma máscara que dura mais tempo. Mas não precisa ser essa, qualquer máscara, até uma bandana, ou lenço na cara, já ajuda. Mas o distanciamento precisa ser respeitado.
Nesse sentido, já que o distanciamento é fundamental, a alternativa neste momento seria mesmo controlar a lotação dos veículos, digamos, estabelecer limite máximo de 50% da lotação atual, para que as pessoas se mantenham à distância de 1,5 metros, dois metros, entre si…
Sim. E há outras estratégias que o poder público pode adotar, como hierarquizar e distribuir os horários de entrada no trabalho, por setores, por exemplo. O problema, como já disse, é que não se quer perder dinheiro… Perder dinheiro, em hipótese alguma, ouvi isso numa declaração do presidente do Metrô um outro dia. O mesmo vale para os ônibus. Claro, ninguém está aqui para fazer favor, mas transporte, assim como a saúde, precisa ter política pública… A saúde tem o SUS; já o transporte público, não tem nada.
A propósito, há um movimento, o MDT, que defende um Sistema Único do Transporte, para que as pessoas tenham acesso ao transporte como já têm à saúde e à educação. Quer dizer, que o transporte seja considerado, de fato, um direito universal, como está previsto na Constituição Brasileira…
Sim, o fato é que há outras estratégias. Isso que você mencionou, a Erundina [Luiza Erundina de Souza, prefeita de São Paulo entre 1989 e 1992] já propôs quando foi prefeita. Eu lembro claramente dessa proposta, que infelizmente não avançou. E não avançou porque não há interesse, o setor só quer “comer o filé mignon; e não roer o osso”. Então, para concluir há sim outras estratégias: é possível minimizar o impacto do coronavírus reduzindo o número de pessoas por veículo, e também hierarquizar os horários de entrada e saída das pessoas nas atividades econômicas, como já mencionei. (*Edição: Regina Rocha)