Eletromobilidade desafia indústria no Brasil

Do Valor Econômico
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil/Ilustração/Fotos Públicas

O plano de eletrificação do transporte nos Estados Unidos, anunciado durante a Cúpula do Clima, na semana passada, era a peça que faltava para uma guinada histórica da indústria automobilística global. A adesão do segundo maior mercado de veículos do mundo a uma tendência já forte na Europa e China amplia o uso de carros elétricos no planeta. Ao mesmo tempo, a novidade coloca mais pressão sobre o Brasil. Da decisão sobre que tipo de automóvel será vendido ao brasileiro depende também a sobrevivência de um imponente parque industrial, que faz do país o oitavo maior produtor de veículos do mundo.

Sob o ponto de vista de mercado, o Brasil enfrenta problemas iguais aos de outros emergentes. Os carros 100% elétricos disponíveis são importados e caros para os padrões da maioria dos consumidores. O custo elevado inviabiliza a produção local e, para piorar, falta infraestrutura para carregamento de baterias. São questões que demandam esforço conjunto, de governos e setor privado, e, principalmente, recursos. Nos países ricos, além do investimento na infraestrutura, os governos oferecem bônus a quem troca o carro a combustão por um elétrico.

Não se pode esperar que um país com alto déficit fiscal, problemas de saúde e habitação, agravados pela pandemia, e grande parte da população em situação de miséria se dê ao luxo seguir o exemplo da Alemanha. Em junho de 2020 a primeira-ministra Angela Merkel elevou de € 6 mil para € 9 mil o valor do bônus concedido pelo governo para quem compra um carro elétrico.

Nos Estados Unidos, o pacote que o presidente Joe Biden propôs para a eletrificação do transporte soma mais de US$ 300 bilhões em investimentos em infraestrutura de estações de recarga de baterias e incentivo ao o desenvolvimento tecnológico.

Fosse o Brasil um país sem indústria automobilística, como o Chile, por exemplo, bastaria definir quais veículos importados oferecem o melhor custo-benefício. Se a escolha fosse pelo elétrico, a instalação da infraestrutura para carregamento de baterias seria o maior dos problemas. Mas no Brasil um passo errado coloca em risco as mais de 40 fábricas que se espalham em dez Estados e que há tempos operam com praticamente a metade da capacidade.

A atividade desse parque representa 3% do PIB no Brasil e depende fortemente do mercado interno, o sexto maior do mundo. É justamente para proteger essa indústria que o Imposto de Importação de automóveis sempre foi elevado. Exceto por duas linhas de produção de baixos volumes de modelos híbridos na Toyota, com preços acima de R$ 160 mil, não há planos, no curto ou médio prazos para produção de carros 100% elétricos no país. Os importados custam acima de R$ 200 mil.

As montadoras podem optar por manter as linhas de veículos a combustão durante alguns anos, até o custo dos elétricos baixar a ponto de justificar a produção local. Isso daria tempo também para a organização da infraestrutura de recarga de baterias. Mas, até lá, as exportações do setor ficariam ainda mais limitadas a países vizinhos mais pobres, o que aumentaria a capacidade ociosa das fábricas. Isso também provocaria um distanciamento maior do desenvolvimento tecnológico e pesquisa nessa área.

A boa notícia é que a expansão do uso dos veículos elétricos, reforçada, agora, pelos EUA, fará o custo do carro elétrico cair, o que, consequentemente, pode favorecer sua comercialização em países como o Brasil, afirma Jaime Ardila, especialista em indústria automobilística e fundador do Hawksbill Group, consultoria internacional com sede nos EUA.

O entrave, porém, destaca Ardila, “continua a ser a necessidade de a infraestrutura ter de ser financiada e desenvolvida pelo governo”. “É difícil ver esse item virar prioridade no orçamento no curto prazo, quando existem outras necessidades”, afirma. “Talvez, dentro dos compromissos assumidos na Cúpula do Clima possa aparecer algum subsídio nessa área para o Brasil em troca da proteção da floresta amazônica. Mas isso precisaria de um comprometimento do governo brasileiro muito maior”, completa o especialista.

Já faz algum tempo que as montadoras têm ampliado a oferta de modelos elétricos para atender às rígidas regras de emissões, principalmente na Europa. Alguns países já fixaram datas para o fim das vendas de veículos movidos a combustíveis fósseis. A Noruega saiu na frente ao proibir a venda desse tipo de carro a partir de 2025. Em 2030 será a vez de Reino Unido, Holanda, Irlanda, Suécia, Islândia, Dinamarca e Eslovênia. Canadá, Espanha e França vêm em seguida (2040). Cidades chinesas e a Califórnia fixaram datas semelhantes.

Na Noruega, modelos puramente elétricos representaram 56% das vendas em março. Somados às versões híbridas, o total do mercado norueguês dos veículos eletrificados chegou a 84,8%, segundo a Electrive, serviço de informação de eletromobilidade europeu.

No mercado europeu, a participação de carros 100% elétricos (recarregados só na tomada) e híbridos (que incluem um motor a combustão para carregar o elétrico) subiu de 3% para 23% entre o fim de 2019 e dezembro de 2020, segundo a Associação Brasileira do Veículos Elétrico (ABVE). Nos Estados Unidos, a fatia dos eletrificados ainda é pequena – 2%. No Brasil, embora em expansão, a participação de elétricos e híbridos ficou em 1% em 2020, segundo a ABVE.

O presidente da ABVE, Adalberto Maluf, aponta distorções tributárias como um dos inimigos do carro elétrico no Brasil. “Por que um carro flex 1.0 a combustão paga 7% de IPI e no elétrico a alíquota desse imposto chega a 13%, 18% ou até mais?”, questiona. O cálculo de tributos para veículos em vigor no Brasil leva mais em conta a cilindrada do motor a combustão.

Há três anos foi formado um grupo de trabalho com representantes das montadoras, dos importadores e do governo federal, com vistas à criação do chamado Plano nacional de eletromobilidade. Mas o ritmo das discussões diminuiu sensivelmente na gestão de Jair Bolsonaro.

Há pouco tempo, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) começou a reunir-se com representantes de setores ligados à energia, como Petrobras e a União da Agroindústria de Cana-de-Açúcar (Unica), para encontrar a melhor matriz energética para veículos no país. Grande parte das montadoras defende melhor aproveitamento do etanol, uma fonte renovável de energia limpa desde o plantio. O setor também desenvolve opções de motores movidos a biocombustíveis, principalmente em caminhões.

Mas, enquanto isso, fora do Brasil, o carro elétrico é a estrela do momento. Em janeiro, a presidente mundial da General Motors, Mary Barra, anunciou metas agressivas, com o lançamento de 30 novos modelos elétricos até 2025. Na Alemanha, o presidente mundial da Volkswagen, Herbert Diess, anunciou em março a meta de vender 1 milhão de veículos elétricos este ano e tornar-se a líder global desse mercado até 2025.

A melhor vitrine das novidades em elétricos pode ser conferida esta semana em Xangai. A cidade chinesa realiza o primeiro salão do automóvel presencial do mundo desde o início da pandemia. Desfilam no Xangai Auto Show carros de montadoras que inclusive já desistiram de produzir no Brasil.

É o caso do luxuoso EQS, da Mercedes-Benz, que em dezembro anunciou o fechamento da fábrica de automóveis no Brasil. Construída em Iracemápolis (SP), a operação durou só cinco anos. Perdeu o sentido quando os alemães perceberam que tanto a fábrica quanto o país não tinham condições de atender à nova ordem dentro da companhia: só produzir automóveis elétricos. A Ford, que anunciou o encerramento definitivo da atividade industrial no Brasil em janeiro, aproveita o salão de Xangai para lançar o Mustang elétrico.

Mas a maior sensação da feira é o Hong Guang Mini EV, que custa US$ 4,2 mil. Produzido pela joint venture entre General Motors e as chinesas Saic e Liuzhou, o novo elétrico “popular” é o melhor exemplo da revolucionária transformação do automóvel neste século.

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