Especialistas discutem o que mudar para tornar as cidades mais sustentáveis

Do O Estado de SP
Foto: Luiz Guadagnoli/Secom – Ilustração/Fotos Públicas

Vivemos o século das cidades. É nelas que estão a maioria dos problemas, das soluções e das pessoas. Cada vez mais. Até 2050, seremos 70% da população mundial em ambientes urbanos. Uma retomada verde passa, portanto, por transformações profundas no modo de viver, de trabalhar, de transitar, de se divertir, de socializar – e todos esses elementos dependem do planejamento urbano para funcionar da melhor forma possível.

Urbanistas, cientistas, biólogos, engenheiros e políticos de metrópoles mundo afora tentam organizar essas mudanças. Os exemplos se espalham, mas vêm muito mais de realidades que apostaram em transformações do que de iniciativas de novas cidades erguidas em áreas ainda não urbanizadas. Para muitos especialistas, uma cidade mais sustentável, do futuro, é aquela que soube se reinventar.

Isso ocorre por meio de mudanças de paradigma, de ações para liquidar desigualdades e do amplo uso de tecnologia, para voltarmos a viver em sinergia com o meio ambiente. “Se quisermos manter algum senso de equilíbrio com a natureza, a gente precisa integrá-la de uma maneira muito mais presente nas cidades”, é o que defende Fabiano Lemes de Oliveira, professor na universidade Politécnico de Milão e autor do livro Green Wedge Urbanism: History, Theory and Contemporary Practice (Urbanismo de Cunhas Verdes: História, Teoria e Prática Contemporânea), sem edição em português.

Para ele e outros especialistas da área, a mudança virá com um planejamento de cidades policêntricas, em que serviços, lazer, trabalho e transporte estarão disponíveis em deslocamentos curtos. Em Paris, por exemplo, a ideia é de uma cidade de 15 minutos para resolver todas as necessidades, o que inclui mudanças também nos espaços públicos, das calçadas às escolas.

No caso das capitais latino-americanas, cuja urbanização foi mais espalhada e desordenada, essa mudança passa também pelo adensamento das áreas mais bem servidas. O que precisa estar alinhado a melhorias nos espaços públicos.

“O desafio fundamental é a necessidade de se pensar cidades que tenham capacidade de acolher mais gente, fazer isso de uma maneira com que não aumentamos o impacto no planeta e, se possível, aumentar a presença da natureza nas áreas urbanas”, diz Oliveira. “A gente não tem como hoje em dia ficar replicando um modelo de expansão urbana baseada em casas unifamiliares para todo mundo, não tem como.”

O adensamento deve ocorrer junto a diversas melhorias do ambiente urbano. Uma das aplicadas, em cidades como Estocolmo (Suécia) e Copenhague (Dinamarca), é a da implantação de cunhas verdes, áreas naturais que começam mais reduzidas no centro e se expandem em direção às periferias. Segundo Oliveira, elas reúnem potenciais para lazer, agricultura urbana, corredor ecológico (ao atrair a fauna) e ambiental (por facilitar a drenagem urbana, absorver dióxido de carbono e reduzir o efeito das ilhas de calor, dentre outros benefícios).

Essa mudança precisa de integração para ser mais efetiva. “Intervenções muito pontuais ou desconectadas acabam deixando de lado um potencial muito grande que vem com a conexão das áreas, que maximizam uma série de benefícios”, pontua. “O método cartesiano de pegar um objeto complexo e separar em diferentes partes, tentar entender essas partes e depois colocar junto acaba sendo insuficiente. A gente precisa ter um novo modelo de planejamento que seja mais sistêmico.”

Professor do Instituto de Biociências da USP e coordenador do programa USP Cidades Globais, Marcos Buckeridge explica que o policentrismo das cidades também envolve a oferta de alimentos. Cidades europeias e asiáticas, por exemplo, convivem há anos com políticas de pomares e hortas urbanas, cujas versões mais tecnológicas são edifícios transformados em fazendas urbanas.

Para ele, uma “cidade do futuro” deve lançar mão do uso de novos materiais e tecnologias, seja na construção civil, seja no transporte. Entre os exemplos que cita, estão o uso da cana-de-açúcar para geração de energia elétrica, tipos de concreto que absorvem menos calor e redes de gerenciamento de energia para redistribuição nos horários de menor consumo.

“A ideia é que se aplique a ciência. Não adianta fazer um prédio maravilhoso, que seria considerado sustentável, se chega ali uma energia poluidora”, ressalta. “Nesse sentido, vontade política é tudo. Entender o que a população precisa.”

Essa transformação também envolve oferta diversificada de transporte para todos, conforme destaca Luis Antonio Lindau, diretor do programa de cidades do WRI Brasil, instituição internacional de desenvolvimento sustentável. “Não dá mais para a gente ficar pensando que um veículo ou um único modo vai resolver a questão do transporte. A gente deveria ter como meta uma rede integrada e multimodal.”

Isso inclui medidas para restringir a circulação de veículos, como a inspeção veicular (com taxação para os mais poluentes), a troca dos ônibus a diesel por opções mais sustentáveis, o controle de vagas de estacionamento e até a criação de zonas de ar limpo, que proíbem determinados transportes.

Tudo isso dentro de um investimento nas áreas mais necessitadas. “A gente tem de evitar chegar em um ponto em que talvez se evolua para o 5G, com uma capa tecnológica e de cidades inteligentes, e continue sofrendo com falta de saneamento, com falta de abastecimento de água”, argumenta Lindau. “A gente precisa que essa recuperação seja em prol do verde, que não seja mais do mesmo.”

Paula Santos, gerente de mobilidade ativa da WRI Brasil, defende o conceito da “rua completa”, cujo desenho universal dá acessibilidade e espaço para diferentes tipos de transporte. Isso inclui o conceito de “traffic calming”, com a elevação da rua para o nível da calçada, estimulando os carros a circularem em menor velocidade. “Todas ruas podem ser ruas completas. Cada uma vai ser diferente. A médio e longo prazo, seria o ideal.”

Um ponto-chave para que isso ocorra é a vontade política. “Na teoria, é tudo muito bacana, todas as cidades querem ser ativas e promover ciclismo e movimento a pé. Mas, na hora de colocar em prática, tem uma resistência muito grande em tirar espaço do carro e colocar para o pedestre e o ciclista.”

Outro conceito difundido no planejamento urbano sustentável é o de soluções baseadas na natureza (também conhecido pela sigla SBN). Elas propõem formas de “usar a natureza para prover serviços que hoje a gente faz com infraestrutura cinza”, descreve Henrique Evers, gerente de desenvolvimento urbano na WRI Brasil.

“Entendo que uma retomada que possa acontecer nos próximos meses e anos tem que considerar a integração com a natureza como parte da solução”, pontua. “Isso vem através de soluções em várias escalas, começa com os chamados jardins de chuvas – canteiros (feitos com técnicas) que podem atuar na drenagem usando a natureza -, com a integração com áreas verdes, (vai até) a recuperação dos rios, tudo isso se relaciona com essa sinergia entre o urbano e o verde.”

No caso de intervenções menores, por exemplo, o impacto pode ser no microclima e no acesso ao lazer. É o caso, por exemplo, dos pocket parks no México, em que terrenos baldios e antigos estacionamentos foram convertidos em pequenos jardins e áreas verdes.

Evers defende que um investimento com propostas mais sustentáveis traz melhor resultado a médio e longo prazo. “É possível ter prosperidade e desenvolvimento econômico aliados a soluções que também protegem o meio ambiente. O mais rápido e fácil é sempre manter os modelos antigos, que nos levaram ao que a gente tinha, do ‘velho anormal’, mas o investimento em um novo tipo de infraestrutura, com benefício social, econômico e ambiental, é mais benéfico.”

Também dentro do conceito de soluções baseadas na natureza, a urbanista Perola Brocanelli, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, defende a renaturalização de rios e da mata ciliar. “Não é plantar árvore bonita, é deixar aquele capinzão de várzea, meio alagado”, destaca. “As grandes áreas verdes ao longo dos rios podem se transformar em células de purificação.”

Ela argumenta que é necessário haver maior conhecimento sobre a hidrografia das cidades, para entender onde estão várzeas e outras áreas alagáveis e proibir novas construções no entorno. Com a renaturalização e o tratamento da água, esses espaços também se tornam áreas de lazer e de contato com a natureza, quase “praias urbanas”. “Crescer sobre os rios é uma sentença de morte.”

Um exemplo simbólico internacional dessa nova relação com os cursos d’água são as cidades-esponja na China, projetadas com parques e outras áreas alagáveis, tetos verdes e calçadas permeáveis, tudo para absorver e armazenar a maior parte da água das chuvas. “Precisa de um projeto, não é do dia para a noite. Primeiro precisa da consciência da população para apoiar as ações”, destaca a urbanista.

Construção civil e arquitetura também precisam se tornar mais sustentáveis

Professora do Departamento de Tecnologia de Arquitetura e Urbanismo da USP, Roberta Kronka considera muito difícil se falar em edifícios sustentáveis se não estiverem integrados a um meio urbano sustentável, com fachada ativa (comércio no térreo), boas calçadas, áreas verdes e outras melhorias necessárias. “Vira meio um showroom”, diz.

Ela aponta que soluções mais sustentáveis para imóveis passam por um projeto adequado, que aproveite a ventilação natural e a luz solar e utilize materiais para o clima da região. Por vezes, construções de décadas atrás são mais qualificadas que as mais recentes, ela comenta. “Está caindo a ficha que a gente tem uma qualidade ruim de edificação. Mas está havendo uma retomada de valores de conforto ambiental, de eficiência energética.”

A urbanista lembra que “não existe material mágico”, mas sim opções com desempenho mais desejável para a demanda. Por isso, é importante “olhar o ciclo de vida do material construtivo”. Ou seja, utilizar o que está disponível localmente pode ser mais sustentável pelo custo, pela emissão de poluentes da cadeia de produção e pela geração de emprego do que uma matéria-prima considerada mais sustentável trazida de outro continente.

Dentre as soluções mais adotadas, ela cita os painéis fotovoltaicos (hoje disponíveis até em versões em vidros e películas), iluminação de LED (que está ganhando espaço também em vias públicas) e chuveiros com tecnologias que gastam menos água para dar a mesma sensação de volume. A professora cita, ainda, o mercado de construção desmontável, conhecido na Europa. “Não é só uma porta ou uma janela de demolição, é aproveitar tudo. Mas, culturalmente, aqui ainda tem um preconceito com isso.”

Mudanças sustentáveis também são necessárias nas obras, em que ainda há um grande volume de desperdício, a mão de obra nem sempre é qualificada e envolve majoritariamente uma matéria-prima muito poluente (o concreto). Em paralelo, discute-se opções ainda pouco difundidas no Brasil, como a madeira engenheirada pré-fabricada, o adobe e a tecnologia de impressão em 3D.

Mudanças também podem ser aplicadas em edifícios já existem, por meio do chamado “retrofit”, cuja maior oferta costuma ser nas áreas centrais, tornando os imóveis mais eficientes e dando novos usos. “Esse estoque de edificação pode ser ocupado com comércio ou habitação com qualidade com luz, aproveitando a ventilação, mudando o uso (geralmente para residencial).”

Arquiteta, engenheira civil e consultora em sustentabilidade, Aurea Vendramin diz que o interesse no País ainda é majoritariamente motivado pela redução de consumo. “Sempre a gente vê a Europa anos luz na frente. O Brasil está caminhando com uma performance bem diferente.”

Ela vê, contudo, um aumento no interesse com a pandemia, especialmente em relação a conforto térmico, iluminação, aquecimento solar, reuso de água, geração de composteira e painéis fotovoltaicos. “Tem edifícios novos, recém-entregues, que já precisam ser readequados. São edifícios novos e burros, com apartamentos inteligentes, que têm tudo da nova tecnologia de consumo, mas que o edifício não tem uma estrutura com olhar para o meio ambiente.”

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