Em ofício assinado no dia 9 de outubro de 2017, pelo prefeito de Campinas, Jonas Donizetti, atual Presidente da FNP – Frente Nacional de refeitos, os dirigentes municipais solicitam ao presidente Michel Temer que vete o projeto de lei nº 152/2015, que altera o art. 6º da Lei nº 10.826, de 22.12.2003, que dispõe sobre o Estatuto do Desarmamento.
Foto: Magnus Nascimento |
O projeto de lei 152 surgiu como uma ideia polêmica em 2015 na Câmara Federal. Articulado pelo presidente da Associação dos Agentes de Trânsito do Brasil, Antonio Coelho, o PL, apesar de aprovado nas duas casas legislativas, não tem consenso entre os próprios agentes.
No estado de São Paulo, que reúne cerca de 60% de todos os agentes de trânsito do Brasil, a maioria não quer usar arma no trabalho, segundo demonstrou matéria desta segunda-feira (dia 9) do Jornal Nacional. O diretor do Sindicato de São Paulo afirmou à reportagem da TV Globo que as agressões contra agentes no estado aumentaram 36% em relação ao ano passado, mas que isso não justifica colocar uma arma na cintura deles, pois “só vai piorar a situação”.
O PL acrescenta ao Estatuto uma mudança para que possam portar arma de fogo, quando no exercício de suas funções, “os agentes das autoridades de trânsito, conforme conceituado pelo Anexo I da Lei nº 9.503, de 23 de setembro 1997 – Código de Trânsito Brasileiro, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que não sejam policiais, quando em serviço.”
Na carta enviada pela FNP, o prefeito Jonas Donizetti afirma que projeto de lei viola, “a um só tempo, os dois requisitos constitucionais, pois, para além de ser flagrantemente inconstitucional, é nefasto no que concerne à preservação do interesse público e da paz social”.
Leia o documento na íntegra:
Ofício FNP nº 1657/2017
Brasília/DF, 09 de outubro de 2017.
A Sua Excelência o Senhor Michel Temer Presidente da República Federativa do Brasil
Assunto: PLC 152, de 2015 – que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o SINARM.
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
1. Ao cumprimentar cordialmente Vossa Excelência, refiro-me ao projeto
de lei (PLC nº 152/2015) que altera o art. 6º da Lei nº 10.826, de 22.12.2003, que
dispõe sobre o Estatuto do Desarmamento. O projeto acrescenta o inciso XII, ao art.
6º do Estatuto, admitindo, doravante, que possam portar arma de fogo, quando no
exercício de suas funções, “os agentes das autoridades de trânsito, conforme
conceituado pelo Anexo I da Lei nº 9.503, de 23 de setembro 1997 – Código de
Trânsito Brasileiro, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que
não sejam policiais, quando em serviço.”.
2. O projeto de lei encontra-se sob a apreciação de Vossa Excelência
para sanção ou veto, e, nos termos do artigo 66, § 1º, da Constituição Federal de
1988, caso o projeto seja considerado inconstitucional ou contrário ao interesse
público, deve merecer o veto do Presidente da República. No caso em apreço, o
projeto de lei viola, a um só tempo, os dois requisitos constitucionais, pois, para além
de ser flagrantemente inconstitucional, é nefasto no que concerne à preservação do
interesse público e da paz social. As razões do enquadramento do projeto no
permissivo constitucional que autoriza seu veto serão desenvolvidas em articulados
próprios.
I – RAZÕES DE INTERESSE PÚBLICO PARA O VETO
3. Registre-se, de início, que o presente projeto de lei se opõe à política
pública de desarmamento da sociedade civil brasileira. No momento em que há esforço institucional para diminuição da circulação, comercialização e do uso de
armas de fogo, propõe-se armar os agentes de trânsito que estão em contato
diuturno com a população. A medida esbarra nas diretrizes do Estatuto do
Desarmamento e nos princípios norteadores do exercício do poder de polícia no
trânsito.
4. É de relevância destacar que a presente medida é levada à apreciação
de vossa excelência em momento dramático do cenário internacional em relação ao
controle do porte de armas de fogo. Com efeito, é de domínio público o recente
atentado ocorrido nos Estados Unidos que vitimou quase uma centena de inocentes
e deixou mais de quinhentos feridos, fazendo ressurgir o debate sobre a
necessidade do imediato controle do acesso de uso de armas de fogo pela
sociedade de forma geral.
5. Atualmente, a fiscalização administrativa é amparada em novas
ferramentas tecnológicas que permitem o controle do trânsito sem necessidade de
intervenção humana. As inúmeras câmeras espalhadas pelas cidades; os modernos
leitores de placas; os aparelhos controladores de velocidade dos veículos
automotores são tecnologias fundamentais na organização do trânsito e da
mobilidade urbana nas cidades.
6. O controle feito pelas novas ferramentas tecnológicas, deve ser
conjugado com uma atuação de viés educativo a ser realizada pelos agentes de
trânsito. A fiscalização do trânsito deve ter como linha mestra a aproximação entre o
agente de trânsito e o cidadão. E, certamente, a portabilidade de arma de fogo por
agente estatal digladia com essas modernas diretrizes que fundamentam a
fiscalização do trânsito e o controle da mobilidade urbana.
7. O projeto aprovado pelo Congresso Nacional tem fundamento na
insegurança do agente de trânsito quando do exercício de suas funções. Ocorre, no
entanto, que a segurança pessoal dos agentes de trânsito, quando do exercício de
suas funções, é garantida pela Polícia Militar e Guarda Municipal, duas categorias
que já possuem porte de arma de fogo. Não há justificativa para armar mais uma
categoria de agentes que atua em contato direto com a população. Na revisão do
Código de Trânsito Brasileiro, atualizado com a Lei nº 13.281, 4/5/2016, vale
ressaltar, estão claramente definidas as competências municipais, estaduais e
federais. No âmbito municipal, decidiu-se que as questões de circulação,
estacionamento e parada são competências municipais, o que não implica em
realização de abordagem por parte do agente de trânsito. Quanto as que exigem a
verificação de habilitação e condições de licenciamento, ficam sob responsabilidade
do estado.
8. Por essas razões, entende a Frente Nacional de Prefeitos que o projeto
de lei que concede porte de arma aos agentes de trânsito deve ser vetado por Vossa
Excelência por ser contrário ao interesse público, nos termos do art. 66, § 1º da
Constituição Federal de 1988.
II – RAZÕES DE INCONSTITUCIONALIDADE PARA O VETO
II.A – Contestação do poder de polícia de trânsito sem definição pelo Supremo Tribunal Federal
9. Em diversos municípios brasileiros, entre eles capitais, tal como Belo
Horizonte, os agentes de trânsito estão vinculados a entidades da Administração
Pública Indireta, de natureza jurídica de direito privado, é dizer, empresas públicas e
sociedades de economia mista. Os agentes de trânsito possuem vínculo celetista
com essas entidades da Administração. Por consequência, há diversos tribunais
brasileiros que entendem que esses agentes não possuem poder de polícia
administrativa. Com efeito, segundo essa linha jurisprudencial, o poder de polícia
somente é garantido aos servidores públicos, ocupantes de cargo efetivo, e com
vínculo de estabilidade com a Administração Pública.
10. Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, ao enfrentar
polêmica questão sobre o exercício do poder de polícia pelos agentes de trânsito da
capital do Estado de Minas Gerais, conforme se depreende da análise da ementa do
Recurso Especial nº 817.534/MG:
“ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE.
1. Antes de adentrar o mérito da controvérsia, convém afastar a preliminar de
conhecimento levantada pela parte recorrida. Embora o fundamento da origem tenha
sido a lei local, não há dúvidas que a tese sustentada pelo recorrente em sede de
especial (delegação de poder de polícia) é retirada, quando o assunto é trânsito, dos
dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro arrolados pelo recorrente (arts. 21 e
24), na medida em que estes artigos tratam da competência dos órgãos de trânsito.
O enfrentamento da tese pela instância ordinária também tem por consequência o
cumprimento do requisito do prequestionamento.
2. No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de
polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da
propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate
é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso,
aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista).
3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser
sumariamente divididas em quatro grupo, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento,
(iii) fiscalização e (iv) sanção.
4. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito,
esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas
para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da
carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração
instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade
estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que
não guarda observância ao CTB (sanção).
5. Somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois
aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder
Público.
6. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares
estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro – aplicação de multas para
aumentar a arrecadação.”
11. Cumpre destacar que o exercício do poder de polícia pelos agentes de
trânsito da capital mineira está suspenso pela decisão do Superior Tribunal de
Justiça. Atualmente, o poder de polícia administrativa de trânsito no município de
Belo Horizonte é exercido pela Guarda Municipal.
12. A questão do exercício do poder de polícia por agentes de trânsito
vinculados à Administração Indireta ainda está aberta em todo o Poder Judiciário. O
Supremo Tribunal Federal já reconheceu repercussão geral no Recurso
Extraordinário nº 633.282 (Tema nº 532 da repercussão geral). Esse recurso irá
definir se agentes de trânsito de todo o país, vinculados às entidades da
Administração Indireta, possuem ou não poder de polícia administrativa.
13. Desse modo, seria temeridade conceder porte de arma de fogo a esses
agentes no quadro de insegurança jurídica reinante acerca da própria existência do
poder de polícia. Ora, se há discussão acerca do simples exercício do poder de
polícia administrativa (v.g., poder de aplicar multas), com muito mais razão haverá
acerca do uso de arma de fogo por esses agentes. Nesse sentido, a razoabilidade
jurídica recomenda o veto ao projeto de lei. Não há como armar servidores públicos
que sequer têm competência para aplicar as comezinhas penalidades
administrativas.
II.b – Criação de despesa sem correspondente fonte de receita
14. A concessão de porte de arma aos agentes de trânsito implicará
necessidade de aquisição de armamento e munição; realização de exames
psicotécnicos para avaliação da capacidade de uso do armamento pelos agentes;
treinamento dos agentes para uso correto do armamento; responsabilidade civil
objetiva da Administração pelos danos causados pelos agentes em função do uso
indevido das armas de fogo, dentre outras despesas indiretas.
15. Neste ponto, não se pode olvidar que os municípios brasileiros
encontram-se em plena crise fiscal, muitos deles se financiando com repasses
federais e estaduais; promovendo investimento somente a partir da realização de
operação de crédito; com dificuldades para solver a dívida oriunda de precatórios
(neste caso muitos municípios vêm efetuando pagamento mediante uso de
depósitos judiciais, sem custo para o tesouro municipal). Enfim, com dificuldades
para prover os serviços públicos básicos à população.
16. A partir deste quadro financeiro, mostra-se inviável a realização de
despesa com o armamento de agentes para a realização da fiscalização do trânsito
local.
17. À par destas relevantes razões de ordem econômica, há que se
salientar que estamos diante de projeto de lei federal que cria obrigação financeira
para o município, sem indicação de fonte de receita. Ora, sendo o município ente
federativo autônomo, nos termos do art. 18 da Constituição da República, não pode
ter seu custeio com pessoal majorado em razão da edição de Lei Federal ou
Estadual.
18. Nesse sentido, o projeto de lei claramente viola o pacto federativo, na
medida em que interfere na organização administrativa dos municípios.
II.C – Invasão de competência privativa dos Municípios para regulamentar o regime
jurídico de seus servidores.
19. A Constituição concede à União poder para legislar privativamente
sobre trânsito e transporte (art. 22, XI). Ocorre que a concessão de porte de arma de
fogo para agentes de trânsito dos municípios, não se insere no domínio do trânsito,
mas sim sobre o regime jurídico administrativo dos servidores públicos.
20. A competência para legislar sobre regime jurídico de seus servidores é
exclusiva do município. Insere-se na competência para tratar de assuntos de
interesse estritamente local (art. 30, I). Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal ao determinar que regras atinentes ao Estatuto dos Servidores Públicos
Federais não se aplicam aos outros entes da federação.
21. Em outras palavras, não pode a lei federal determinar que uma dada
categoria de servidores públicos municipais irá exercer suas funções portando arma
de fogo. Não é por outra razão que o porte de arma para as policiais militares é
definido em marcos legais editados pelos Estados-Membros.
22. A analogia entre polícias militares e civis estaduais e agentes de
trânsito municipais reafirmam a clara invasão de competência dos municípios para
tratar de temas relacionados ao regime jurídico de seus servidores.
III – CONCLUSÃO
23. À vista destes fundamentos, a Frente Nacional de Prefeitos espera que
Vossa Excelência vete o projeto de lei, seja porque é contrário ao interesse público,
ou por mostrar-se flagrantemente inconstitucional, na medida em que: viola
competência do município para definir o regime jurídico de seus servidores; cria, por
meio de lei federal, despesa para os municípios sem preocupação com a indicação
de fonte de receita; aumenta o grau de insegurança jurídica em relação ao regime
jurídico dos agentes de fiscalização de trânsito, cujo poder de polícia já se encontra
em julgamento no Supremo Tribunal Federal com repercussão geral já reconhecida.
Respeitosamente,
JONAS DONIZETTE
Prefeito de Campinas/SP
Presidente da FNP
Com cópia:
Secretaria de Governo da Presidência da República – Ministro-Chefe Antônio
Imbassahy
Diário do Transporte