A bandalha que já impera no sistema de transportes do Rio ficou mais visível, durante o fim de semana, na Zona Sul, onde vans, proibidas em boa parte da cidade, circulavam sem repressão, fazendo trajetos que deveriam ser cumpridos pelos ônibus. Com direito até a alto-falante anunciando o itinerário. Tudo porque os veículos de uma das empresas da região, que faz percursos até o Centro, sumiram das ruas.
Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo |
Os passageiros foram surpreendidos pela ausência dos ônibus da Viação São Silvestre. No sábado, no domingo e ontem, quem buscou as linhas 580 (Largo do Machado-Cosme Velho), 583 (Cosme Velho-Leblon, via Jóquei) e 584 (Cosme Velho-Leblon, via Copacabana) ficou no ponto sem ver um ônibus sequer. Logo, vans passaram a circular, ocupando o vácuo deixado pelo transporte regular. As outras alternativas foram táxis e veículos oferecidos por aplicativos de celular.
Depois de esperar 50 minutos em vão, o porteiro Antonio Gomes teve que desembolsar mais dinheiro do que normalmente usa para se deslocar.
— Esperei o que pude, mas não deu mais. Já me atrasei para o trabalho. Tive que mandar um vídeo para a minha patroa ver que não tem ônibus — disse ele, que embarcou num carro pedido por meio de um serviço de aplicativo.
A interrupção dos serviços da São Silvestre também doeu no bolso dos passageiros que precisam usar a linha 580, responsável por fazer a integração com o metrô. Com ônibus de outras empresas fazendo o mesmo trajeto, eles perderam o benefício da tarifa de integração. Os usuários reclamaram ainda da falta de informações. Marcos Vinícius da Silva, de 41 anos, veio de Santos, litoral paulista, para passar o Natal e não sabia que o 580 estava com problemas de circulação. Por isso, quase perdeu o horário que tinha no Cristo Redentor.
— Vamos pegar um Uber, então — disse.
SEM REGISTROS NO GPS DOS ÔNIBUS DA EMPRESA
A equipe do GLOBO percorreu, por três dias, todo o trajeto do 584 e não encontrou nenhum veículo circulando, nem operado pela São Silvestre, nem por qualquer outra empresa. Pelas regras do contrato de concessão assinado entre a prefeitura e o consórcio Intersul, outra viação credenciada para atuar na Zona Sul deveria assumir a operação de linhas que estão com problemas. Nos registros de GPS dos ônibus da empresa, disponibilizado em tempo real pelo município, também não constava nenhum coletivo da linha, na manhã desta segunda-feira.
No sábado, os passageiros faziam fila no ponto final da linha 133 (Rodoviária-Largo do Machado), no Largo do Machado, à espera do ônibus que, na rotina normal, passava em intervalos de uma hora, em média. Cansados de aguardar, alguns usuários embarcavam em vans clandestinas, comuns na Zona Oeste do Rio, que cobravam R$ 3,40, o mesmo preço da passagem de ônibus. Algumas aceitavam até RioCard.
— É uma vergonha. Desde que a São Silvestre passou a atrasar o pagamento dos funcionários, a gente pena por condução. São três meses de sufoco. Nesta linha (133), por exemplo, só há dois ônibus circulando. Se não fosse a van, eu chegaria atrasada ao trabalho todo dia. A situação piorou hoje (sábado) — reclamou a balconista Aline Santos, de 20 anos, moradora do Rio Comprido.
Um motorista, que pediu para não ser identificado, conta que a Braso Lisboa era a única empresa do Consórcio Intersul que estava suprindo a demanda do 133. Segundo ele, as viações Tijuca e Real, que também integram o grupo e deveriam assumir a operação dos trajetos da São Silvestre, não estavam circulando na linha no sábado.
— O 133 está mais raro do que ver pé em cobra. Tenho mofado no ponto. É uma falta de respeito com o passageiro. Como prefiro ir de ônibus, esperei por uma hora até ele chegar — reclamou José Elias, morador do Rio Comprido que usa a linha para ir ao trabalho.
No Largo do Machado, entre 16h e 18h de sábado, havia apenas dois ônibus da linha 133 em circulação contra quatro vans ilegais.
— Não tem jeito. Quero chegar logo em casa, e vou de van mesmo. Se não tivesse a van, ficaria a pé — comentou a estudante Rayane Sousa, de 26 anos, moradora de Santa Teresa.
O consórcio Intersul informou, por nota, que acionou um plano de contingência para suprir os itinerários operados pela São Silvestre. Segundo o grupo, no entanto, a alternativa “se encontra limitada devido aos impactos sofridos por todo o setor com o congelamento da tarifa e as recentes reduções no valor determinadas pela Justiça”. Ainda por nota, explica que, desde o início do ano, “os consórcios vêm alertando para os efeitos da crise, que comprometem a qualidade do serviço e podem levar empresas a fecharem as portas, prejudicando mais de quatro milhões de passageiros e 40 mil rodoviários”.
Sete empresas do Rio já encerraram as atividades desde 2013. O consórcio ressalta que outras 11 estão prestes a fechar as portas. A Transportes São Silvestre é uma delas. De acordo com a nota, a viação teve suas dificuldades financeiras agravadas no início do mês pela perda de 40% da sua receita com as reduções da passagem. No último dia 19, a São Silvestre não colocou os coletivos para circular por falta de combustível.
Nos tribunais do Rio, as empresas, que alegam estar com suas planilhas de custos defasadas, travam uma batalha judicial para aumentar as tarifas. Mas vêm acumulando derrotas. Procurada, a Secretaria municipal de Transportes informou que é de responsabilidade do consórcio manter as linhas operando de forma regular. Em comunicado, a pasta observou ainda que o contrato de concessão é firmado com os consórcios e não com as empresas isoladamente.
A secretaria explicou que o setor de fiscalização monitora permanentemente o funcionamento do sistema para verificar se as linhas estão operando. “Caso seja constatada frota abaixo do determinado, o consórcio pode ser punido com multa diária de 520 Ufirs (R$ 1.663), constatado de irregularidade conforme determina o Código Disciplinar”. Já a Coordenadoria Especial de Transporte Complementar, vinculada à Secretaria municipal de Ordem Pública (Seop), informou que faz operações de fiscalização de vans diariamente em toda a cidade e que o motorista flagrado cometendo irregularidades é autuado.
DISPUTAS JUDICIAIS DIMINUÍRAM TARIFA
As empresas que operam os ônibus municipais assinaram o contrato, que vale por 20 anos, após vencerem uma licitação realizada em 2010, na gestão de Eduardo Paes. No documento, há uma fórmula que prevê como se calculará o aumento da passagem anualmente, baseado em variáveis como o preço do diesel e a inflação. Em 2013, no entanto, Paes decidiu não reajustar a passagem após uma série de manifestações populares.
O valor passaria de R$ 2,75 para R$ 2,95. No ano seguinte, o reajuste foi dobrado. O cálculo da fórmula previa R$ 0,20 de reajuste, e a prefeitura do Rio decidiu conceder mais R$ 0,20 com a justificativa que o dinheiro seria usado para a refrigeração da frota. Nos anos seguintes, o contrato foi cumprido normalmente. Em 2017, no entanto, Marcelo Crivella assumiu a prefeitura e decidiu congelar o preço em R$ 3,80. Em 2017, o Tribunal de Justiça do Rio entrou em cena com três decisões judiciais, em processos diferentes.
A desembargadora Mônica Sardas, da 20ª Câmara Cível, decidiu, em agosto, diminuir a tarifa para R$ 3,60. Esse processo questionava o aumento de 2014. A desembargadora entendeu que esses R$ 0,20 destinados à refrigeração da rede eram irregulares, porque não estavam previstos no contrato, e suspendeu o aumento da tarifa.
Dois meses depois, a passagem caiu novamente. Dessa vez, por decisão da juíza Luciana Lopes, titular da 13ª Vara de Fazenda Pública. Ela entendeu que o aumento previsto em contrato dado em 2015, de R$ 0,20, foi abusivo. A magistrada questiona a própria fórmula adotada. Por isso, ela pediu uma perícia no cálculo. Uma empresa de auditoria, a BDO, analisa os dados para decidir se fará o serviço. Já há duas auditorias em andamento. Uma está sendo finalizada pela Price, paga pela prefeitura.
Outra, feita pela Ernst Young, contratada pelos ônibus. Um representante da BDO informou, em audiência com a juíza Luciana Losada Lopes, que essas auditorias não utilizaram dados auditados — o que, segundo ele, é fundamental para o estudo. Este mês, houve mais uma decisão judicial em que o Rio Ônibus foi beneficiado. A juíza Beatriz Prestes Pantoja, da 8ª Vara de Fazenda Pública do Rio, condenou a prefeitura por não ter, em 2013, reajustado a tarifa como prevê o contrato. As empresas calculam a indenização em R$ 180 milhões, valor que ainda não foi corrigido pela inflação.
O Globo