Transporte público brasileiro na mira da criminalidade

O Brasil é um dos dez países mais violentos do mundo, segundo o Atlas da Violência de 2018. O documento, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, detalha quais os principais fatores que colocam o País nessa situação.
Arquivo/UNIBUS RN
Com mais de 60 mil mortes por ano, o Brasil tem uma taxa de homicídios 30 vezes maior que todo o continente europeu. Além disso, tem 17 das 50 cidades mais violentas no mundo, segundo o ranking publicado no ano passado pela ONG mexicana Segurança, Justiça e Paz; o levantamento foi feito com base na taxa de homicídio por 100 mil habitantes.
Toda essa violência que o país enfrenta tem reflexos nos mais variados setores, entre eles o transporte público. O Brasil é o único país a ter como prática os incêndios intencionais a ônibus. Mesmo sendo um direito social, o transporte público sofre com a insensatez de quem acredita que a violência e a destruição de coletivos são formas aceitáveis de manifestação.
Os motivos são os mais variados; vão desde pequenas reivindicações ou insatisfação com outros serviços públicos a ações coordenadas por facções do crime organizado, com o objetivo de retaliar ou pressionar as autoridades. Os ataques incluem depredações de veículos, roubos de passageiros e funcionários e até os incêndios propositais, que podem destruir parcial ou totalmente os ônibus.
As consequências são incalculáveis. Os crimes abalam a economia, violam o direito de ir e vir por meio de transporte público — a reposição de um ônibus destruído leva pelo menos 3 meses, durante os quais os usuários terão que conviver com uma frota menor — e, mais importante, deixam feridos e ceifam vidas inocentes. 
O primeiro registro de incêndio proposital a ônibus urbano aconteceu no Rio de Janeiro, durante protestos realizados em 1987. De lá para cá, já foram mais de 4.330 ônibus queimados, segundo dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) e da Confederação Nacional do Transporte (CNT) (ver estudo publicado a esse respeito na seção “NTU em Ação”).
No início, a onda de ataques era mais concentrada na Região Sudeste, mas com o passar do tempo foi se espalhando para todas as regiões brasileiras. Atualmente, os incêndios a ônibus ocorrem em maior número nas Regiões Sudeste e Nordeste. 
Onda de violência no Ceará
As duas regiões têm sido protagonistas desse tipo de ocorrência. No ano passado, uma onda de ataques em Minas Gerais chamou a atenção de todo o País. O crime organizado planejou e executou diversos atentados contra 39 cidades mineiras, deixando um total de 29 ônibus urbanos incendiados e um prejuízo de mais de 11 milhões de reais, entre reposição de veículos e pessoas que deixaram de ser transportadas.
No início deste ano ocorreu nova onda de ataques do crime organizado, desta vez no Ceará. Os criminosos, que tentaram fazer o governo do Estado desistir de uma fiscalização mais rigorosa nos presídios, promoveram o caos: entre os dias 2 de janeiro e 4 de fevereiro, foram registrados cerca de 283 atentados contra ônibus, prédios públicos e privados, carros estacionados nas ruas e comércio local em 56 dos 184 municípios cearenses; a maioria dos casos foi registrada na capital Fortaleza. 
Segundo o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Ceará (Sindiônibus), nos últimos cinco anos foram incendiados 135 ônibus no Estado, por motivos que vão desde rebeliões nos presídios a represálias do crime organizado.
O presidente do Sindiônibus, Dimas Barreira, comentou a situação difícil que as empresas de transporte urbano do Ceará enfrentam. “Estamos atravessando a mais severa onda de ataques do crime ao transporte coletivo de nossa história. Infelizmente, isto se tornou frequente desde 2014. Esses atos covardes prejudicam o transporte coletivo, enfraquecem as empresas, aterrorizam a população e privam pessoas do seu direito de circular pela cidade”, desabafa.
Dimas também explicou que orientações são passadas aos funcionários em caso de ataque. “Nós procuramos preparar nossa tripulação para lidar com a situação, numa tentativa de diminuir a desorientação momentânea natural, para que saibam minimamente como proceder. Em situações como essas, nossa principal preocupação é com a segurança das pessoas. Além disso, também precisamos proteger os ônibus e as empresas para que possam continuar a prestar seus serviços, num esforço para que os impactos negativos dessas ações criminosas não se estendam no tempo”, finaliza. 
Para a doutora em Sociologia Maria Stela Grossi, especialista em segurança pública da Universidade de Brasília, a motivação para os crimes vem da atual situação do sistema prisional. “Muito do que está acontecendo pode ser explicado pelo deplorável estado dos nossos presídios, que se tornam um espaço potencial e efetivo de organização criminal. Superlotados e sem mínimas condições de humanidade, viabilizam a guerra entre facções por controle de território interno e externo ao presídio. Muitos desses incêndios são demonstrações de poder e de força e, portanto, de enfrentamento direto aos órgãos de segurança, tanto em nível estadual quanto federal”, explica.
Outra razão para esses acontecimentos, segundo ela, é a junção de pequenos infratores com bandidos de alta periculosidade nas mesmas unidades prisionais. “Muitos dos pequenos infratores que poderiam estar cumprindo pena fora do presídio, uma vez presos, se filiam às facções (até para se protegerem) e se transformam em potenciais instrumentos da criminalidade, aliciados pelos grandes, dentro e fora das grades”, argumenta Maria Stela.
A especialista defende que outra saída para reduzir o número de presos e melhorar o sistema prisional é “a descriminalização (controlada) do uso de drogas, que poderia ser um passo também para desafogar presídios com pequenos traficantes”. Ela expressou ceticismo quanto ao decreto, recentemente aprovado, que alterou as regras para a posse de armas de fogo. “A flexibilização da posse de armas só irá agravar todo esse quadro, já bastante preocupante, da falta de segurança pública do país”, defende.
Assaltos a ônibus no Brasil
Não é difícil encontrar alguém que já foi assaltado enquanto utilizava o transporte público no Brasil. Os assaltos a ônibus urbanos é outro grande problema enfrentado pelos usuários, funcionários e proprietários de empresas de ônibus no País. Segundo levantamento de 2016, realizado pela NTU, em 19 anos foi registrado um total de 53.479 assaltos.
Uma das cidades que enfrenta esse tipo de violência com frequência é Maceió (AL). Em 2016, os assaltos a quatro empresas da cidade totalizaram 1.109 ocorrências — uma média de 92 crimes por mês.
Com toda essa onda de criminalidade, as empresas de ônibus mudaram estruturas e rotinas para proteger seus funcionários e passageiros. Em janeiro de 2017, por exemplo, foram instaladas catracas altas nos ônibus de Maceió (AL). A redução nos assaltos foi expressiva: o número caiu quase à metade, para 507 assaltos no ano. Em 2018, essa redução foi ainda mais perceptível, para 325 assaltos — uma queda acumulada de 82% nas ocorrências. Além das catracas altas, as ações adotadas pela secretaria de segurança pública de Alagoas foram importantes para a diminuição desse número.
O presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Urbano de Passageiros de Maceió (Sinturb), Guilherme Borges de Oliveira, explicou como tem funcionado a iniciativa. “Nós conseguimos uma ótima parceria com a secretaria de segurança pública. Atualmente temos encontros mensais com a cúpula de segurança de Alagoas. Nessas reuniões, levamos os dados registrados pelas empresas, como os bairros de maior incidência de assaltos e as linhas, bem como a hora que são mais recorrentes. Com essas informações, a polícia militar realiza abordagens, trazendo sensação de segurança para o passageiro rodoviário e coibindo uma possível ação criminosa. Os veículos são equipados com câmeras de videomonitoramento, e as imagens são enviadas à polícia civil para investigação, o que já resultou em prisões de quadrilhas especializadas em roubos a ônibus”, comemora.
O Sinturb também concluiu que além de barrar a criminalidade, as roletas duplas são importantes para inibir quem tenta pular as catracas para não pagar passagem.
Outro grande aliado contra a criminalidade é a tecnologia. Segundo Borges, desde o início deste ano o aplicativo CittaMobi, que possui um botão de pânico, está sendo utilizado pelas empresas de ônibus para divulgar horários, linhas de ônibus e os trajetos feitos pelos veículos. Qualquer passageiro pode utilizar o aplicativo para ter acesso às informações e, em caso de assaltos ou até mesmo assédio dentro do transporte público, a polícia pode ser acionada.
As ações futuras das empresas são a implantação de 100% da bilhetagem eletrônica na capital e a retirada do dinheiro em espécie de dentro dos coletivos, por meio do cartão da bilhetagem eletrônica. “Uma ação que já está sendo trabalhada para este ano de 2019 junto com a Prefeitura de Maceió e Ministério Público”, finaliza o presidente.
O motorista Francisco sentiu essas mudanças. Segundo ele, melhorou muito a fiscalização e a diminuição dos assaltos. “Todos os dias, aconteciam assaltos na empresa, a gente passava na central de flagrantes e tinham 4 ou 5 ônibus da empresa, mas agora têm várias operações na rua, toda a polícia está combatendo a criminalidade. Agora melhorou 100%. Melhorou muito e vai melhorar mais ainda”, diz.
Outro sindicato que investiu em segurança foi o Sindicato das Empresas de Transporte Metropolitano da Grande Vitória (GVBus). Em 2018, as empresas de ônibus de Vitória (ES) tiveram nove ônibus incendiados.
Atualmente, toda a frota é equipada com três câmeras em cada ônibus. São 1.420 coletivos em operação, um total de 4.260 câmeras utilizadas para monitorar as viagens. Segundo o sindicato, ao todo, 55% dos novos validadores — que serão integrados às câmeras — já foram instalados, e a previsão é de que chegue a 100% em março, quando será iniciado o processo de ativação das novas câmeras. Também está previsto o aumento gradativo para quatro câmeras por ônibus durante o ano de 2019.
Outra opção também foram as roletas altas. Ao todo, 268 roletas duplas já foram instaladas. O objetivo é que toda a frota seja contemplada com o equipamento. No momento, as empresas estão aguardando retorno da Companhia Estadual de Transportes Coletivos de Passageiros do Estado do Espírito Santo (Ceturb-ES), que está avaliando os resultados apresentados até aqui para dar continuidade ao processo de instalação.
Uma pesquisa interna, feita com dados de 1º de janeiro a 9 de dezembro de 2018, mostrou que foram registrados 439 assaltos aos ônibus do Sistema Transcol. Destes, 44 ocorreram em coletivos com catracas altas, e 395 nos veículos com as roletas baixas. Ou seja, a maioria dos assaltos, 89,9%, ocorreu em ônibus com catracas tradicionais.
NTU pede providências contra incêndios a ônibus ao ministro Augusto Heleno
Para mostrar a gravidade da situação de incêndios a ônibus no Brasil, o presidente do Conselho Diretor da NTU, Eurico Galhardi, e o presidente executivo da NTU, Otávio Cunha, se reuniram com o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), no dia 17 de janeiro. Na ocasião, entregaram ao ministro a publicação Fogueiras da Insensatez – por que queimam os ônibus no Brasil, produzida pela NTU em parceria com a Confederação Nacional do Transporte (CNT), que traz um apanhado histórico das ocorrências de queima de ônibus em todo o país, com depoimentos e números que mapeiam os crimes. A publicação está disponível no site da NTU, em www.ntu.org.br.
No encontro, o general Heleno reiterou a preocupação do governo com o problema e disse que estão sendo tomadas as providências cabíveis. Otávio Cunha afirmou que “não podemos mais conviver com essa violência e impunidade que coloca em risco a vida de passageiros, motoristas e cobradores, além de gerar prejuízos financeiros ao setor e danos irreparáveis à sociedade, que sofre os efeitos da falta do transporte para realizar as tarefas do dia a dia”.
Legislação contra incêndios no Brasil
Com relação à punição mais severa para esses casos, já existe projeto de lei que pode tornar a pena para esse tipo de crime mais grave ao classificá-lo como ato de terrorismo. Trata-se do PLS 272/2016, projeto de autoria do senador Lasier Martins (PDT/RS), que altera a Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. O projeto encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça do Senado aguardando votação. Há ainda o Projeto de Lei (PL 1572/2007) da Câmara, que agrava a pena para crimes dessa natureza, e que se encontra atualmente na pauta do plenário para ser votado.
Matéria publicada na Revista NTUrbano Edição 37, Jan./Fev. 2019.

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