Índios compram ações e viram acionistas de ferrovia para denunciar empresa

Em uma estratégia inédita no país, indígenas guaranis de São Paulo adquiriram ações de uma grande ferrovia para poder apresentar denúncia aos outros acionistas da companhia sobre falta de cumprimento de medidas ambientais e de proteção aos seus direitos. A carta foi lida por indígenas nesta quarta-feira (24) em Curitiba (PR) durante a assembleia anual da Rumo Logística, a maior operadora ferroviária do país, com quatro concessões e 12 mil km de linhas férreas.
Foto: Arquivo/ A Notícia
Conhecida como “ativismo societário”, a compra de ações de grandes empresas por ativistas para provocar a discussão interna nas empresas sobre suas políticas que têm impacto em populações e meio ambiente é prática pouco usada no Brasil. Entre indígenas, é a primeira iniciativa do gênero. Para participar da assembleia, os guaranis compraram seis ações da Rumo, cotadas ontem em cerca de R$ 17 cada uma.
A Rumo detém a concessão sobre a Malha Ferroviária Paulista e duplicou o trecho Itirapina-Cubatão, usado para transporte de cargas do litoral para o interior e vice-versa. Para compensar impactos causados pela obra, segundo o Ministério Público a empresa tem que cumprir uma série de condicionantes ambientais e indígenas. Entre as medidas prioritárias estão a construção de casas, locais de reza e uma ponte, criação de hortas comunitárias e aquisição de microtratores. A obra da ferrovia impacta cerca de 5.000 guaranis que habitam cinco terras indígenas nos municípios de São Paulo, Mongaguá e Itanhaém e Praia Grande (SP), em uma das poucas regiões preservadas de Mata Atlântica no estado de São Paulo.
Os indígenas afirmam, na carta lida aos acionistas nesta quarta-feira, que das 101 atividades de mitigação e compensação assumidas pelas empresas, 72 “estão totalmente paralisadas nesse momento”.
Relatórios da Funai (Fundação Nacional do Índio) e manifestações do Ministério Público Federal de São Bernardo do Campo (Grande SP) afirmam que a ferrovia está descumprindo os termos de um plano básico ambiental formulado pela própria empresa em novembro de 2013.
“Dormimos e acordamos todos os dias com o barulho dos trens que passam carregados no meio das nossas aldeias. As caminhadas pelo território e os momentos de andar com as crianças e transmitir ensinamentos dos nossos velhos se tornaram uma preocupação de garantir que ninguém seja atropelado por um trem. Até mesmo a caça que passava por esses lugares fugiu, e já não encontramos muitos dos pássaros e outros bichos que só sabemos que existem porque nossos velhos contam”, diz a carta dirigida aos acionistas.
Os guaranis afirmaram que receberam “com espanto” uma declaração da Rumo que consta do Relatório de Sustentabilidade Anual da empresa, segundo a qual ela estaria “cumprindo perfeitamente, de maneira ‘participativa e inclusiva’, as medidas que o Ibama e a Funai determinaram para serem executadas em nossas comunidades”.
Os indígenas disseram aos acionistas na carta: “Não é verdade! […] As poucas ações que estão em andamento funcionam muito mal, porque a equipe de licenciamento da Rumo simplesmente não sabe nos ouvir, acham que sabem muito mais que a gente! […] Os senhores estavam cientes de que a Rumo tem tomado essa postura?”
Um dos coordenadores do Comitê Interaldeias, criado pelos índios para fazer a aplicação dos recursos, o professor indígena e guarani Tiago Santos, cuja aldeia fica a apenas 2 km da passagem do trem, disse que antes de procurar a assembleia dos acionistas os indígenas tentaram um acordo extraoficial com a Rumo. O Interaldeias passaria a receber incumbências e recursos para realizar as próprias obrigações da companhia.
A empresa, segundo Santos, a princípio ficou muito empolgada e passou a ajudar na elaboração da parceria. Conforme uma ata de um encontro assinada pelo próprio representante da Rumo, “a proposta foi recebida com entusiasmo pelos representantes da Rumo, Funai, [a empresa contratada] Ecology e MPF, que reafirmaram o valor e a importância de que os povos indígenas possam assumir para si o protagonismo sobre seus destinos”.
Porém, logo após as eleições presidenciais que determinaram a vitória de Jair Bolsonaro (PSL-RJ), a empresa mudou de discurso, segundo os indígenas e o MPF.
“Abruptamente, porém, em 20 de novembro de 2018, a Rumo cancelou participação na reunião agendada, e passou a se recusar inclusive a comparecer à aldeia para esclarecimentos”, diz um texto do MPF.
“O Ministério Público Federal informa, ademais, que promoveu em sua sede, entre novembro de 2018 e março de 2019, cinco reuniões de mediação, entre a empresa Rumo, Funai e Comitê Interaldeias, com objetivo de fazer cessar a infração, mas por desídia da empresa Rumo, todas as tentativas foram frustradas”, afirma o MPF.
No último dia 19, o procurador da República que atua no caso, Steven Shuniti Zwicker, recomendou ao Ibama que aplique uma multa de R$ 10 milhões contra a Rumo e também que proceda a “a suspensão imediata da Licença de Instalação nº 998 e das obras de duplicação do Trecho Itirapina-Cubatão, da Malha Ferroviária Paulista”, cabendo ao Ibama “considerar as conclusões do presente documento para avaliar o pedido de renovação da mesma realizado pela empresa Rumo Malha Paulista”.
O assunto também chamou a atenção da organização não governamental britânica Survival International.
Em carta ao presidente do conselho administrativo da Rumo, Rubens Ometto Silveira Mello, a Survival disse que “o não cumprimento do acordo e o desrespeito aos direitos dos indígenas constitui uma violação da política de ‘compliance’ da Rumo, e uma violação da lei brasileira e da lei internacional. Gostaríamos de saber quais ações a Rumo vai realizar nas próximas semanas para retificar essas violações dos direitos indígenas, com transparência e em plena consulta às comunidades”.
OUTRO LADO
Em nota à Folha, a Rumo afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que “vinha executando normalmente os projetos decorrentes” do CI-PBA (Componente Indígena do Plano Básico Ambiental) mas em julho do ano passado a companhia teria sido informada, “de maneira unilateral, que o Comitê Interaldeias pretendia receber as verbas destinadas às ações e assumir a execução delas”.
“Não se tratava de uma reunião deliberativa, e nenhum acordo foi firmado na ocasião. Representantes da companhia foram impedidos de entrar no território e dar continuidade às obrigações previstas no CI-PBA. A Rumo não possui garantias de que o Comitê Interaldeias realizará tais obrigações com a qualidade exigida e, portanto, espera que a Funai e o Ibama auxiliem no desenrolar da questão, no sentido de garantir que as obras possam ser devidamente executadas. A Rumo esclarece ainda que já foi concluída grande parte da obra de duplicação nos 215 quilômetros de via, incluindo os 55 quilômetros em área de interferência em terras indígenas, com os devidos licenciamentos para sua realização”, diz a nota da Rumo.
Folha de SP

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