Licitações não saem: Tentativas de regular transporte interestadual vêm de longe

Do Jornal Plural (PR)
Foto: Divulgação (ANTT)
Atualização em 28/06/2022, 10:12, para correção de informação

As rodovias Rio-São Paulo e Rio-Petrópolis, inauguradas em 1928, representam marco inicial do chamado rodoviarismo. A partir de então, mas sobretudo depois dos anos 1940, surgem as primeiras empresas de viação. Gradativamente, o modal rodoviário se expandia, alcançando lugares não atendidos pelas estradas de ferro. Nos anos 1950 e 1960 esse processo se intensificou. Consolidou-se na década de 1970, modernizou-se nos anos 1980 e 1990, e de 20 anos para cá se ajusta a novas realidades do mercado – primeiro, a concorrência com o avião, agora, com os aplicativos de transporte.

O que nunca mudou nesses quase 100 anos anos foi a dificuldade de se regulamentar de maneira efetiva o serviço de transporte interestadual rodoviário de passageiros. Por exemplo: uma concorrência pública para a exploração das linhas chegou a ser cogitada por alguns governos e até tentadas por outros. Nunca passou de ensaio, embora a Constituição de 1988 preconize isso e em 2013 a Justiça Federal tenha determinado, movida por ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal em 2011.

“Quando a ANTT [Agência Nacional de Transportes Terrestres] foi criada, em 2001, o principal desafio era conseguir promover a licitação das linhas de transporte rodoviário interestadual, no que jamais logrou êxito”, lamenta, em entrevista ao Plural, o mestre em Engenharia de Transportes Felipe Freire da Costa. Ele é servidor de carreira da agência, mas fala aqui não como porta-voz do órgão, sim na condição de especialista em regulação do setor – sobre o que escreve análises e artigos constantemente.

Para Costa, a ANTT sofre com “baixa autonomia decisória” e, a esse fato, soma-se “a falta de interesse político” em promover um processo licitatório. Também pesa a resistência das viações, observa. “Na ausências licitações”, continua ele, “a ANTT se limita a editar normas regulatórias que reproduzem disposições de regulamentos antigos, oriundos de outros órgãos e entidades, os quais, em sua edição, foram elaborados à feição dos interesses dos grandes grupos econômicos que dominam esse mercado há mais de meio século”.

Origem do problema: A forma peculiar como esse serviço foi se constituindo explica essa dificuldade em se abrir concorrência para as linhas. Conforme bem narra o livro ‘Sonho sobre Rodas’, de Antônio Rúbio de Barros Gômara e Nélio Lima, as ligações por ônibus entre as cidades, sobretudo de estados diferentes, foram sendo feitas a partir de empreendimentos locais – individuais ou familiares.

A obra, publicada pela Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), conta como surgiram viações emblemáticas, algumas atuando até hoje e que se tornaram grandes corporações. Todas nasceram de iniciativas de micro e pequenos empresários que, diante do aumento da urbanização e do surgimento núcleos populacionais, povoados, vilas e cidades, começaram com pequenos e muitas vezes precários veículos a oferecer transporte entre esses pontos. Não raro eles próprios abrindo estradas no percurso.

Ou seja, a implementação de linhas de ônibus interestaduais decorreu de movimentos particulares, e não de uma decisão estratégica do poder público. A partir da década de 1950, com investimentos governamentais na construção de estradas de rodagem, as empresas pioneiras já dispunham de base e expertise na oferta do serviço. Nos anos 1970, com uma malha rodoviária bastante ramificada, com um Brasil urbanizado e com fluxos migratórios intensos (Nordeste-Sudeste, Sul-Centro Oeste e Sul-Norte), aquelas viações se estabelecem como grandes grupos.

Depois da Constituição de 1988, a necessidade de licitar o serviço se tornou latente. Nos anos 1990, houve movimentos governamentais sinalizando a adoção desse caminho – como os decretos federais 99.072/1990, do governo José Sarney; 952/1993, da gestão Itamar Franco; e 2.521/1998, de Fernando Henrique Cardoso. As concorrências, contudo, nunca ocorreram.

Anos depois, sancionada também por Fernando Henrique Cardoso, a Lei Federal 10.233/2001 – que criou o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte e a ANTT – igualmente deixou expressa a licitação como condição para outorgas de permissão ou concessão para a exploração das linhas de ônibus interestaduais. O Decreto 4.130/2002, na mesma gestão presidencial, e que tratou de aprovar o regulamento da ANTT (e assim colocá-la em funcionamento, na prática), deu à agência a incumbência de conduzir tais processos licitatórios.

Em 2008, já na segunda gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, deu passos para tirar do papel a obrigatoriedade das licitações foram dados. A ANTT lançou consulta pública naquele ano, por meio de página específica na internet. Em janeiro de 2009, a agência divulgou um calendário de audiências públicas presenciais em, por ordem de realização, Salvador (BA), Fortaleza (CE), São Paulo (SP), Belo Horizonte (MG), Curitiba (PR), Cuiabá (MT), Belém (PA) e Brasília (DF). “Participam usuários, empresas e trabalhadores do setor”, noticiou a ANTT, à época.

Era o programa denominado ‘ProPass Brasil – Projeto da Rede Nacional de Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros”. Entretanto, o projeto foi interrompido, e retomado em 2011, com novas audiências públicas programadas pela ANTT, em agosto e setembro daquele ano. Entretanto, em apenas quatro cidades: Fortaleza, Porto Alegre, São Paulo e Brasília.

Foi em 2011 que o Ministério Público Federal, via Procuradoria da República no Distrito Federal, propôs ação civil pública pleiteando a realização da licitação das linhas de ônibus interestaduais. Em julho de 2013, a Justiça Federal (9ª Vara, Distrito Federal), em decisão da juíza Lana Ligia Galati, determinou a publicação de edital de licitação em até dez dias. A magistrada observou que o processo deveria ter sido lançado em abril do ano anterior, para que estivesse concluído em maio de 2013, o que não ocorreu.

Tentativas de se colocar edital na praça sofreram resistência das empresas de ônibus, inclusive via ações judiciais. Até que, em 2014, durante a apreciação pelo Congresso Nacional de uma medida provisória que instituía o Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores, o chamado ‘Inovar Auto’, os legisladores incluíram um artigo que estabelecia a prestação regular de serviços de transporte interestadual e internacional por ônibus como possível de ser realizada apenas por “autorização” do órgão regulador (ANTT). Tornou-se o artigo 3° da Lei Federal 12.996/2014, a que converteu a medida provisória em questão.

Lógica de mercado: Na prática, isso representou uma legalização da exploração dos serviços sem a necessidade de uma concorrência pública. Basta a empresa interessada em operar determinado trajeto solicitar autorização à ANTT, mediante critérios técnicos e econômicos definidos em normatizações diversas. “Com a Lei 12.996/2014, o legislador reposicionou o setor de transporte rodoviário interestadual de passageiros sob a ótica de uma economia de mercado”, avalia o especialista Felipe Costa, “conferindo ampla autonomia à ANTT para regulamentar esse mercado”.

Todavia, continua ele, “a agência reguladora envidou esforços no sentido de manter o setor em funcionamento com as mesmas características e operadores de sempre. Essa dificuldade em fazer valer a vontade da lei se deve muito mais à fragilização da agência, a suscetibilidade a pressões, do que propriamente a complexidade da regulação setorial”, explica o mestre em Engenharia de Transporte.

Aplicativos: Nos últimos anos, entraram em cena as plataformas de ônibus fretados, como Buser, 4Bus, Gipsyy, FlixBus, Ubus, Busbud, popularmente chamadas de “uber dos ônibus”. Trata-se da oferta de viagens, por veículos fretados por essas corporações, com a compra de passagens feita exclusivamente por aplicativo. O embarque e desembarque ocorre fora dos terminais rodoviários.

Se os aplicativos de mobilidade urbana como Uber, 99 e afins impactaram o transporte público municipal por táxi e ônibus, as plataformas de viagens por ônibus também têm representado concorrência para as empresas que operam sob regulação da ANTT. Sem a necessidade de dispor de toda infraestrutura que uma viação demanda (frota própria, garagens, pessoal, espaços nas rodoviárias, pontos de apoio nas estradas), as plataformas conseguem aplicar tarifas até 50% mais baratas que a das linhas regularmente constituídas.

Além de investir na criação de suas próprias plataformas (ver capítulo IV desta série de reportagens) como meio para enfrentar a atuação desses novos atores, os grupos de viação têm pleiteado instrumentos legais que coíbam a atuação dessa concorrência, tida pelos empresários do setor como desleal. Conseguiram um passo nesse sentido, com a sanção, em janeiro último, da Lei Federal 14.298/2022.

Novas mudanças na legislação: O novo ato mantém a dispensa de licitação, mas torna mais rigorosos os critérios técnicos e operacionais exigidos das empresas que solicitarem autorização, do órgão regulador (ANTT), para exploração de trechos. Mais ainda: a autorização para quando se tratar de prestação de serviço não regular (como fretamentos) veda a venda passagens. Na prática, é um dispositivo legal que restringe a atuação dos aplicativos, uma vez que estes atuam justamente mediante a venda antecipada dos bilhetes.

Consultada, a ANTT informa, por meio de nota enviada por sua Coordenadoria de Imprensa, que uma proposta de ajustes na legislação que regula o transporte terrestre coletivo interestadual de passageiros tramita internamente, “visando a agregar eventuais melhorias” a serem indicadas pelo corpo técnico do órgão.

Após essa “consulta interna”, a proposta “será submetida a controle social”, afirma a agência. Isso significa, segundo o órgão, promover audiência pública, “ocasião em que toda a sociedade poderá apresentar sugestões para aperfeiçoar a minuta”. A ANTT antecipa que serão implantados indicadores para medir o desempenho das viações, as quais, inclusive, “poderão receber incentivos, caso obtenham bons resultados, ou sanções, caso não desempenhem satisfatoriamente suas atividades”.

Ainda de acordo com a Agência, a atualização do marco legal deve garantir “universalização” do serviço de transporte interestadual rodoviário de passageiros. “Com isso”, sublinha nota da ANTT, “a própria competição pelo mercado se torna mais um instrumento para a melhoria dos serviços” aos passageiros.

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