Artigo: Assimetria regulatória no transporte rodoviário

Do Jornal O Estado de S. Paulo
Por Gesner Oliveira*
Foto: Divulgação (Scania)

O setor de transporte rodoviário de passageiros é fundamental para a economia brasileira. Atualmente, no entanto, verifica-se uma assimetria regulatória em desfavor das empresas que atuam no transporte regular de passageiros. Empresas de fretamento têm extrapolado seu campo de atuação e, com isso, colocado em risco a livre concorrência, a segurança dos passageiros, o próprio acesso aos serviços e a sustentabilidade financeira dos agentes envolvidos no setor.

Segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), hoje são mais de 50 milhões de passageiros transportados por ano no Brasil, através de 2.800 linhas regulares e 230 permissionárias. Mais de 3 milhões de passageiros de grupos prioritários são transportados gratuitamente e mais 1,5 milhão podem usufruir dos serviços pagando metade do preço. Tais estatísticas estão relacionadas à característica constitucional de serviço público do transporte rodoviário de passageiros.

Historicamente, por conta de sua importância para a população, em especial os mais pobres, diversas mudanças ocorreram no setor visando ao estímulo da concorrência e à garantia da execução do serviço. Além disso, tais mudanças privilegiaram a segurança dos passageiros, uma vez que esse modal de transporte registra altas taxas de acidentes no País – foram 80 acidentes com vítimas a cada 100 km de rodovia em 2021, resultando em 5.391 mortes, segundo dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT).

Devido à importância dos serviços de transporte rodoviário, nota-se que as autoridades competentes têm estipulado regras rigorosas à operação das empresas. Tais regras versam sobre a qualidade dos veículos, a aptidão dos motoristas e até sobre a saúde financeira das companhias. O intuito de tal rigidez não é outro senão o de salvaguardar a vida e o bem-estar dos passageiros.

Entretanto, atualmente, empresas de fretamento que vendem passagens através de aplicativos têm oferecido serviços análogos aos de transporte regular, sem, contudo, cumprirem os mesmos requisitos regulatórios. Tais empresas têm um nicho de atuação bem definido: transportar passageiros com alguma característica em comum, como um grupo de funcionários de uma mesma empresa. Tal serviço é denominado “circuito fechado”, indicando que os passageiros transportados devem ser os mesmos na ida e na volta. Ocorre que, ao vender passagens individuais, elas têm, na prática, atuado no mesmo segmento das empresas de transporte regular.

Como as empresas de fretamento não estão sujeitas às mesmas regras, verifica-se uma assimetria regulatória capaz de prejudicar a livre concorrência, a segurança dos passageiros e os investidores do setor. Do ponto de vista concorrencial, é nítido que há empresas competindo em um mesmo mercado, mas sujeitas a regulações distintas. Isso gera uma concorrência desleal, já que as empresas de transporte regular passam a ter uma estrutura de custos operacionais mais complexa do que as de fretado.

Os prejuízos aos passageiros são ainda mais evidentes, uma vez que a diferenciação regulatória se dá a despeito da segurança dos usuários, que ficam expostos a mais riscos. De fato, há um alto número de acidentes envolvendo empresas de fretamento em situações que poderiam ser evitadas se as mesmas regras de segurança fossem aplicadas a todo o mercado.

Ademais, as empresas de transporte regular têm um compromisso constitucional com aspectos sociais. A atuação das empresas de fretamento fora do circuito fechado coloca em xeque tal compromisso, o que pode trazer efeitos negativos para os consumidores, como a exclusão do mercado de grupos prioritários que hoje, por lei, têm direito à gratuidade, tais como idosos, jovens de baixa renda e habitantes de cidades pouco populosas.

Por fim, ressalte-se que, em certas ocasiões, a captação de recursos para essas empresas não é realizada seguindo os princípios ESG (governança ambiental, social e corporativa, na sigla em inglês). Tal fato ocorre pois, ao não cumprirem os mesmos requisitos ambientais e de gestão que suas concorrentes do setor de transporte regular, não é possível afirmar que as empresas de fretamento que estão atuando fora do circuito fechado aderem às melhores práticas vigentes. Tal desalinhamento precisa ser analisado com cautela pelos investidores sob pena de incorrerem em greenwashing e comprometerem sua reputação e seus retornos financeiros.

Em suma, observa-se uma assimetria regulatória na prestação de serviços de transporte rodoviário que tem gerado uma querela judicial que precisa ser rapidamente resolvida, sob pena de se comprometer a livre concorrência, a segurança dos passageiros e a sustentabilidade financeira dos agentes que investem no setor. A isonomia das regras no setor passa por uma regulação minimalista e pró-concorrencial que valha para todos os players e que seja capaz de garantir um ambiente de mercado competitivo, seguro e sustentável.

* Gesner Oliveira é sócio da GO Associados e Professor da FGV-SP.

** O texto que você acabou de ler não reflete, necessariamente, a opinião do UNIBUS RN, sendo de total responsabilidade do seu autor.

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