Por Valor Econômico
Por Joaquim Levy*
Foto: Pedro Ventura (GDF / Fotos Públicas)
Os transportes correspondem às maiores emissões de carbono brasileiras, depois daquelas do desmatamento e da pecuária em pastagens degradadas. Os 200 MtCO2 emitidos pelo diesel e gasolina anualmente excedem as emissões da indústria e sua eliminação é essencial para o país chegar às Emissões Líquidas Zero até 2050.
Eliminar as emissões nos transportes é menos difícil do que parece, porque a eficiência do motor elétrico é 2 a 3 vezes maior do que a do motor de combustão e o potencial de energias renováveis é grande no Brasil. Uma frota de 60 milhões de automóveis, rodando 12 mil km/ano, com uma eficiência de 0.18 kWh/km sem contar perdas de transmissão, exigiria 160 TWh anuais, ou 25% da energia elétrica produzida hoje no Brasil. Eletrificar a frota de caminhões, se ela dobrar em relação à atual, aumentaria a conta em 400 TWh (60% da geração elétrica atual).
A eletrificação dos veículos, somada ao crescimento tendencial da demanda por eletricidade, levaria à necessidade de triplicar a geração elétrica até 2050. Essa geração duplicou desde 2001, com o auxílio de grandes hidroelétricas. A eletrificação exigiria até 250 GW de nova capacidade renovável, o que se compara à capacidade atual de 170GW, incluindo todas as fontes, e à expansão recente das fontes eólica e solar de cerca de 5 GW/ano.
O investimento anual para a geração necessária à eletrificação do transporte estaria perto de 1% do PIB, com os custos atuais das fontes renováveis e sem contar a expansão da transmissão e distribuição necessárias. Esses valores são financiáveis, dados o baixo risco dessa geração e a economia de combustível proporcionada. Os atuais 40 Mtoe/ano de diesel (280 milhões de barris de petróleo) custam US$ 20 bilhões, ou 1,5% do PIB, mais a despesa de refino e distribuição, montantes poupados ao serem substituídos por luz solar e vento gratuitos.
Essa substituição pode prejudicar a Petrobras? Não necessariamente, se a empresa exportar a produção do pré-sal, ajudando outros países a deslocar o carvão e diminuir suas emissões.
Para alcançar a eletrificação, provavelmente o foco deve ser na Eletrobras e na regulação. Pensando no futuro, o professor Edmar Bacha notou recentemente que faltou tratar as questões regulatórias-concorrenciais antes de se editar a MP da diluição da Eletrobras (independente das mudanças de texto na conversão da MP).
Essas questões são importantes para a precificação da empresa e orientação do investimento na expansão da geração, inclusive quando se permitir ao pequeno consumidor escolher seu fornecedor de energia. O investimento em fontes solar e eólica é mais fácil do que em grandes hidroelétricas, atraindo até agora capital abundante e diversificado. Mas poderia o aumento de rentabilidade da nova empresa, com o aumento de tarifas que ela ganhará e as economias com funcionários, integração das subsidiárias e outras ações possíveis com a privatização de seu controle, criar um grande poder de mercado e alterar esse quadro?
Dado que o potencial hidroelétrico brasileiro está quase esgotado, a empresa provavelmente destinará seus excedentes financeiros para reforçar sua posição nos mercados de transmissão e de energias renováveis, além de modernizar e repotenciar suas hidroelétricas, compensando eventual redução do volume de água atribuída a elas.
Com a separação da remuneração dos contratos de suprimento de energia daquela do “lastro” (uma forma de disponibilidade para confiabilidade ao sistema), prevista no PLS 414-2021, esses excedentes podem ter grande valor. Caso a remuneração do lastro cubra toda vida do projeto, mas não seu custo total, e os contratos de suprimento de energia encurtem com a liberação dos consumidores, novos projetos podem ter menos garantias a oferecer a financiadores de mercado, valorizando o investimento com recursos próprios.
A transmissão, por seu lado, continuará sendo um trunfo, devido à dispersão geográfica e intermitência das fontes renováveis. Ela é hoje regida por leilões e tarifação independente da distância, mas essas características podem se alterar, afetando o perfil e dinamismo dos investidores em energias renováveis.
O valor do armazenamento de energia também mudará com o incremento das fontes intermitentes. A Agência Internacional de Energia tem lembrado que as hidroelétricas conseguem aumentar ou diminuir sua geração mais rapidamente e com menor custo do que as usinas nucleares ou térmicas. E elas, assim como o armazenamento por bombeamento de água, têm uma escala que as baterias químicas dificilmente alcançarão, e menor impacto ambiental. Não escapa a muitos, portanto, que a precificação desses serviços – também prevista no PLS 414-2021 – e seus efeitos na integração das diversas fontes de energia também influenciarão a expansão das fontes renováveis.
Em suma, a eletrificação do transporte não deve ser cara, mas escolhas regulatórias ainda pendentes tornam incerto o real valor da Eletrobras e a velocidade e equilíbrio dos investimentos na geração elétrica necessários para o país alavancar suas vantagens na rota das Emissões Líquidas Zero.
Investimentos também dependem da tributação, a qual nem sempre é favorecida por decisões sem ampla discussão prévia. Nesse sentido, pode ser um fator de conforto saber que o prometido ajuste da “tabela” do Imposto de Renda da pessoa física e, quase certamente, a ampliação do Bolsa Família, não dependem de mudanças imediatas na tributação dos dividendos.
O ajuste do IRPF não está sujeito ao Artigo 14, § 1º da LRF e, na avaliação de muitos, ampliar o Bolsa Família não exige aumento permanente de receita, porque o orçamento do programa pode ser alterado anualmente. E, se exigir, um bom reforço nas suas prestações ainda caberia na chamada margem líquida de expansão de despesas (Artigo 4º, § 2º da LRF) para 2022.
* Joaquim Levy é ex-ministro da Fazenda, Diretor Gerente do Banco Mundial e diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercado do Banco Safra.
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