Do UOL
Foto: Guilherme Legaria – 4.mar.14/AFP
A falta de competição entre as empresas de ônibus é apontada como uma das causas para a má qualidade do transporte público brasileiro. Na maioria das grandes cidades, as mesmas viações atuam no setor há anos, pois barreiras impedem que novos interessados entrem no negócio. Uma delas é ter uma frota.
Um ônibus novo de tamanho grande, de 14 metros de comprimento, com ar-condicionado custa R$ 560 mil, por exemplo. Para operar numa grande cidade, é preciso comprar algumas centenas deles, o que soma um investimento milionário, cuja recuperação leva anos e pode depender da demanda de passageiros e de outras incertezas.
Para atrair mais empresas e investimentos ao setor, Chile e Colômbia passaram a apostar em novos modelos de contrato: um para o fornecimento de frota e outro para operá-la, como já era feito em alguns países da Europa. No Brasil, a regra é que a mesma empresa faça as duas coisas.
Na quarta-feira (18), o Senado brasileiro aprovou um pacote de R$ 4 bilhões para ajudar o transporte público a se recuperar das perdas da pandemia. Uma das contrapartidas para receber recursos é que as cidades revisem seus contratos até o fim de 2021, o que abre caminho para que esses documentos sejam refeitos de novas formas.
“A mera penalização dos operadores não melhorou a qualidade do serviço. A única forma de gerar um incentivo real para melhorar é o risco de perder a concessão”, diz Juan Carlos Gonzalez, chefe de gabinete do Ministério dos Transportes do Chile.
Em outubro de 2019, um protesto contra a alta da tarifa do metrô em Santiago foi o estopim para uma grande onda de manifestações no país, que durou meses. Os atos levaram o governo a fazer várias concessões, incluindo um plebiscito que aprovou a elaboração de uma Constituição.
A partir de 2018, o governo chileno fez contratos para Santiago que pagam primeiro os fornecedores dos coletivos e garantem um determinado retorno sobre o investimento, o que ajudou os bancos a reduzirem os juros para financiar a aquisição de ônibus.
O objetivo é atrair novos investidores, como fundos privados, que buscam opções com remuneração garantida. E empresas que se especializarem nisso poderiam assumir contratos em várias cidades e países, de modo a ter ganhos de escala ao comprar ônibus em grandes quantidades.
“Recebemos 23 ofertas para a nova etapa da licitação de Santiago, que deve ser concluída até o fim do mês”, conta González.
No Chile, a proposta atraiu empresas de energia elétrica, que ganham duas vezes: ao fornecer veículos elétricos e ao vender a energia para alimentá-los. A adoção deles ajuda a reduzir a poluição.
Com o novo formato, nos últimos dois anos Santiago recebeu 776 coletivos elétricos e outros 1.135 a diesel, no padrão Euro 6, o nível menos poluente do mercado. E os contratos de operação passaram a ter prazos curtos, de 5 a 7 anos, que podem ser estendidos se indicadores de desempenho forem alcançados.
Em Bogotá, o sistema foi dividido entre quatro provedores de frota e quatro operadores. “Tínhamos contratos longos, de 24 anos, e agora são de 15 anos para frota elétrica e de 10 para diesel”, diz Sofia Valenzuela, chefe de planejamento do TransMilenio, serviço de ônibus que passou a adotar contratos separados em 2019.
Em caso de queixas dos usuários, o governo da capital colombiana passou a descontar diretamente da remuneração dos operadores, em vez de cobrar multas. A cidade também arrecada dinheiro para custear o transporte com um imposto sobre a gasolina.
Com a separação do fornecimento de frota, o transporte público se aproxima de modelos como o da Uber, que não possui carros. Cabe a cada motorista arrumar um veículo que atenda a certos padrões, mas ele tampouco precisa ser o dono. Muitas vezes, os condutores de apps usam carros de locadoras ou de startups. Mas os passageiros nem pensam nisso: o importante é que o carro, ou o ônibus, chegue logo.
“O transporte público perde muitos passageiros por conta da falta de qualidade”, comenta Cristina Albuquerque, gerente de Mobilidade Urbana do instituto WRI Brasil. “E como aqui os operadores são donos das frotas, é muito difícil trocar ou rescindir esses contratos, sob risco de ficar sem o serviço.”
Para Francisco Christovam, assessor especial do SPUrbanuss, sindicato das viações paulistanas, esse tipo de mudança deve atrair mais competidores para o negócio, mas ele duvida que prosperem. “Virão muitos amadores, e operar ônibus em uma cidade como São Paulo é para profissionais”, diz.
Ele ressalta que faltam corredores e faixas de ônibus na cidade, o que agiliza as viagens e permite otimizar a capacidade dos ônibus, e que a prefeitura da cidade às vezes atrasa pagamentos. “No começo da gestão João Doria [2017], um repasse de R$ 300 milhões foi adiado e pago só no ano seguinte, em dez parcelas sem correção”, reclama.
A cidade de São Paulo levou anos para concluir a licitação do serviço de ônibus, mas praticamente não houve concorrência e, em 2019, os mesmos operadores ganharam o direito de atuar por mais 15 anos, até 2034.
“Para melhorar a qualidade do serviço, é preciso que as empresas e os governos trabalhem em parceria, e não que as prefeituras pensem apenas em aplicar multas. E que também não mudem de ideia de forma radical a cada gestão. Já testamos muitos combustíveis, como gás, biodiesel, e os programas foram interrompidos”, comenta.
Christovam avalia que não falta financiamento para a compra de ônibus no Brasil, mas aponta que muitas viações quebraram nos últimos meses por conta da pandemia. “Na maioria das cidades do país, as empresas precisam se manter só com as tarifas. Conforme muita gente ficou em casa, a demanda caiu até 80%. Foi preciso manter 100% da frota com 20% da remuneração. Era insustentável”, disse.
“No Chile e na Colômbia, a resistência de quem já está no sistema foi o principal entrave para mudar o modelo de contrato”. avalia Alburquerque, do WRI. “A ideia desse novo modelo é quebrar um ciclo vicioso, no qual a gente fica sempre com os mesmos operadores. É raro ver empresas de uma cidade do Brasil operando em outras regiões”, comenta.