Da Folha de SP
Foto: Heloisa Ballarini/Ilustração/Fotos Públicas
O relógio marca 4h30 quando a diarista Nalva Ribeiro, 56, inicia sua jornada desde o bairro Lajinha, em Ibirité, na Grande Belo Horizonte, até a zona oeste da capital mineira, onde trabalha. O caminho começa ainda no escuro, quando percorre a pé um trecho de cerca de 1,5 km para chegar até o ponto do primeiro ônibus.
“Aí demoro uma hora até chegar ao centro e depois ando mais 20 minutos para pegar o segundo ônibus”, diz. As condições do caminho não são das melhores. “A gente divide a rua com os carros em uma parte e, onde tem calçada, é esburacada”, afirma Nalva. “Também é perigoso. Já fui assaltada aqui.”
Uma pesquisa da ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos) mostrou que 39% das 67 bilhões de viagens realizadas no país em 2018 ocorreram por meio de caminhadas sob condições de estrutura muitas vezes precárias como o percurso de Nalva. Um levantamento da ONG Corrida Amiga aponta que 80% das calçadas do país apresentam irregularidades como buracos, obstruções e estreitamentos.
É nessa condição que as calçadas receberam e devem receber ainda mais pedestres a partir deste ano. Só na cidade de São Paulo, 32% afirmam ter passado a andar mais a pé para se proteger do novo coronavírus, e a estimativa é de que 41% da população adote a caminhada como meio de locomoção no pós-pandemia, de acordo com a ONG Rede Nossa São Paulo.
A preferência por essa forma de deslocamento subiu de 9% para 23% em todo o país, segundo a organização Rede Brasileira de Urbanismo Colaborativo (Rede BR), devido às medidas de isolamento social e à redução da frota de transporte coletivo.
As irregularidades representam um risco aos pedestres. Uma a cada cinco vítimas de queda atendidas pelo Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, por exemplo, sofreu o acidente em alguma calçada.
Entre as pessoas acima de 50 anos, 43% declaram ter medo de cair na rua devido a calçadas precárias, de acordo com pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz de Minas Gerais.
Na Tijuca, zona norte do Rio, a professora aposentada Teresa Peres é uma dessas vítimas. “A idade começa a chegar e a gente fica mais medrosa”, diz. Aos 62 anos, ela coleciona um histórico de quedas nos arredores do bairro. Em um dos episódios, quebrou um dente e teve que ir ao hospital. “Quando pisei na calçada, tinha um buraco. Enfiei o pé e bati com a cara e os joelhos no chão.”
O caso mais recente aconteceu em frente a um supermercado. Dessa vez, foram os desníveis da calçada que fizeram a aposentada tropeçar. “Uma pedra era mais alta que a outra. Tropecei e fui de joelho no chão de novo.”
Para ser considerada ideal, a calçada deve ser acessível a todos (com rampas e piso tátil para alerta ou direção), oferecer superfície regular, contínua e antiderrapante e ter largura adequada para uma travessia confortável.
Arborização, espaços de convivência e iluminação ajudam a melhorar a caminhabilidade de um lugar, ou seja, o nível de conforto nos trajetos dos pedestres pela cidade, segundo o ITDP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento).
Nas capitais fluminense e mineira, assim como na maior parte das cidades brasileiras, o proprietário do imóvel é responsável por fazer cumprir a maioria dessas determinações, sujeitas à fiscalização da prefeitura.
Com a Covid-19, mesmo a “calçada ideal” mostrou ser falha na garantia do distanciamento social. A largura mínima da área destinada à circulação de pedestres (faixa livre ou passeio) em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, de 1,5 m, dificulta o cumprimento da recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde), que sugere distanciamento de ao menos um metro de distância entre as pessoas para reduzir risco de contágio.
Uma solução é pensar em alternativas temporárias para áreas com grande fluxo de pessoas. Essa é uma das propostas do LabIT (Laboratório de Intervenções Temporárias e Urbanismo Tático) do programa de pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O LabIT baseia as intervenções na metodologia do urbanismo tático. “É a ideia de uma ação rápida e de baixo custo que pode reprogramar o espaço público”, explica a professora Adriana Sansão. “Se ela for bem-sucedida, pode se tornar permanente.”
Em um primeiro momento, poucos recursos são necessários, diz Danielle Hoppe, gerente de Transportes Ativos do ITDP Brasil. Ela cita uma ação realizada no bairro Cachoeirinha, em Belo Horizonte, onde, apenas com tinta, cones e balizadores de concreto, foi possível reduzir o fluxo de veículos e ampliar as calçadas. “Por mais que nossas estruturas não estejam preparadas para receber mais pedestres com segurança, é sempre possível resolver”, afirma.
O conteúdo deste especial foi produzido pelos participantes do Lab 99+Folha de Mobilidade Urbana. Ao longo de dois meses, 30 estudantes do último ano do curso de jornalismo e recém-formados de 21 cidades do Brasil participaram de um programa que envolveu, além de palestras online com especialistas e profissionais da Folha, a elaboração de reportagens com diagnósticos e desafios da mobilidade em tempos de pandemia.
Devido ao risco de contágio pelo novo coronavírus, os integrantes do programa foram orientados a priorizar os canais digitais na produção dos seus trabalhos.
A iniciativa, fruto da parceria da Folha com a empresa de tecnologia em mobilidade urbana 99, busca contribuir para a formação e o aperfeiçoamento de profissionais voltados para a cobertura dessa que é uma das mais urgentes questões no dia a dia das cidades brasileiras. Dentre essas contribuições está a edição inédita do Manual de Jornalismo de Mobilidade Urbana Folha/99, com verbetes específicos sobre o tema.