Mercado de ônibus opõe o governo a senadores e PGR

Do Jornal Valor Econômico
Foto: Andreivny Ferreira (UNIBUS RN)

Em cima da hora, o governo conseguiu evitar a votação de um projeto de lei defendido por grandes empresas de ônibus e que reverte o processo de abertura no mercado de transporte rodoviário interestadual de passageiros.

Os ministérios da Infraestrutura e da Economia avaliam que a aprovação do PL 3.819/20, pronto para análise no plenário do Senado, significaria um retrocesso no estímulo à concorrência. A Confederação Nacional do Transporte (CNT), com o respaldo de empresários do setor, afirma que a abertura ocorreu de forma atabalhoada e provocou desorganização do mercado.

O projeto, relatado pelo senador Acir Gurgacz (PDT-RO), prevê mudança no regime de exploração do serviço. A outorga para novas linhas deixaria de ser por autorização e voltaria ao esquema de permissões. Não é uma mera troca de palavras. Na permissão, o governo regula tarifas e serviços (itinerários e frequências), além de garantir a viabilidade técnica da linha. Na autorização, há flexibilidade na oferta dos serviços e menos amarras. Itinerários e frequências são livres.

Em dezembro, um decreto do presidente Jair Bolsonaro deixou claro que o transporte interestadual de passageiros funcionará mediante “liberdade de preços” e estabelece “inexistência de limite para o número de autorizações”.

De acordo com o Ministério da Infraestrutura, antes do decreto, 66% das linhas tinham um único operador (em situação de monopólio) e outras 26% contavam com o atendimento de duas viações (duopólio). Havia competição entre três ou mais empresas em apenas 8% do total de rotas.

Nos seis primeiros meses de vigência do novo marco, diz o ministério, deram entrada na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) solicitações para 74.997 linhas. Se todos os pedidos forem deferidos, haverá um aumento de 175% das ligações operadas. O número de municípios atendidos subirá dos atuais 1.882 para 2,3 mil.

“A agência diz que está sendo rigorosa, mas é pouco transparente na outorga das autorizações”, critica o presidente da CNT, Vander Costa. Ele alega que tem havido deterioração na qualidade dos serviços, sem fiscalização de horários programados e idade da frota. “Hoje qualquer um que tenha um ônibus velho e uma carteira de motorista amador pode se habilitar. Não somos contra a abertura, mas há concorrência desleal, à custa de precariedade do sistema e risco de quebra das empresas sérias.”

Diante das mudanças feitas pelo governo Bolsonaro, a Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiros (Anatrip) entrou com ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF). O procurador-geral da República, Augusto Aras, assinou, em abril, parecer no qual contraria o governo e cobra licitação dos serviços.

No meio da confusão e apontando o transporte interestadual de ônibus como um serviço público essencial, o senador Marcos Rogério (DEM-RO) apresentou a proposta de voltar ao regime de permissões e definindo a exigência de licitação. O PL 3.819/20 entrou em pauta na quinta-feira passada e só não foi deliberado por causa dos apelos do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE).

Como forma de tentar construir um acordo, o governo pediu o adiamento da votação por até dez dias. “Esse tema ainda encontra, digamos assim, muita divergência e muita resistência por parte do governo. [É importante] que a gente possa ter um período de, pelo menos, oito a dez dias para uma nova tentativa de esforço para construirmos essa importante matéria”, explicou Fernando Bezerra.

A justificativa dele é que o projeto ganhou mais um artigo. Isso porque o relator, Acir Gurgacz, incluiu uma emenda que amplia o prazo para que se organize uma licitação. De 18 meses, no texto original, passou para oito anos. “Parece-nos que esse prazo é suficiente para que a ANTT elabore todos os estudos necessários para promover as licitações”, afirmou Gurgacz.

O relator e sua família têm interesse direto no setor. Eles são donos da Eucatur, empresa de transporte rodoviário, coletivo urbano, cargas e táxi aéreo, fundada em 1964 pelo pai do senador e que está presente em 23 Estados, além de operar na Venezuela e Bolívia.

Gurgacz foi condenado em 2018 por ter obtido, mediante fraude, financiamento junto ao Banco da Amazônia para renovar a frota de ônibus da Eucatur. De R$ 1,5 milhão liberados, o senador foi acusado de se apropriar de R$ 525 mil. Com o restante, comprou ônibus usados, diferentemente do objeto do empréstimo, que era a compra de ônibus novos, prestando contas com notas fiscais falsas.

Por conta dessa condenação, ele está atualmente em regime aberto – o que lhe permite frequentar o Congresso durante o expediente.

Nos bastidores, o governo suspeita que a verdadeira intenção seja boicotar a concorrência. No passado, tentativas de organizar uma licitação fracassaram. O sistema funcionou, de 2008 a 2014, com base em licenças precárias enquanto a ANTT organizava um leilão, mas houve enorme resistência. Pressionada, a ex-presidente Dilma Rousseff aceitou mudança para o regime de autorização, o que só acabou sendo plenamente regulamentado em 2019.

Como compensação pelo adiamento da matéria, alguns senadores chegaram a tentar emplacar um pedido para que o governo suspenda todas as autorizações concedidas até a avaliação dessa matéria. A proposta partiu de Kátia Abreu (PP-TO). Ela afirmou que vai solicitar ao Executivo um levantamento de todas as empresas que foram autorizadas a operar desde 2019, de quais Estados elas são e em quais trechos estão operando.

Outro defensor da proposta é o líder do DEM, Rodrigo Pacheco (MG). “É inimaginável pensar que um serviço regular de transporte de passageiros seja autorizado pelo poder discricionário de alguém da ANTT, que decide se é a empresa A ou se é a empresa B, sem aferir minimamente as condições disso.”

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