Do O Globo
Foto: José Cruz/ Agência Brasil – Ilustração/Fotos Públicas
O personal trainer Salvio de Souza Júnior, de 40 anos, queria ter comprado uma bicicleta elétrica há tempos e a pandemia do novo coronavírus foi o empurrão que faltava. Foi a saída que ele encontrou para atender seus alunos, que moram entre Leblon e Copacabana, na Zona Sul do Rio. Todos interessados em fazer exercícios físicos ao ar livre no lugar das academias. Com medo de se expor mais ao vírus usando o transporte público, revisitou os planos de abraçar uma bicicleta.
– Já tive chicungunha e fiquei três meses me recuperando, sem trabalhar. Não quero adoecer ou correr o risco de contaminar alguém no transporte público – comenta Junior, que escolheu um modelo mais caro de bike por causa da rapidez, pois é impossível concentrar os alunos nas mesmas academias.
Assim como Junior, muita gente tem se rendido ao pedal. Não à toa, o aluguel e a venda de bicicletas aumentaram no país. Esse movimento foi logo percebido na Europa. Roma, Paris, Madri, Bruxelas e Londres subiram nas bicicletas para evitar o risco de contágio da Covid-19 em tempos de retomada das atividades. Em vários países europeus o que se viu foi um aumento de incentivos para a compra de biclicletas, além da ampliação das ciclovias.
No Brasil, mesmo sem políticas públicas específicas, a Semexe, uma espécie de mercado online de venda e compra de equipamentos novos e usados de bicicleta, anunciou ter batido um recorde de faturamento, confirmando a tendência.
Segundo a startup, o aumento foi de 291% em junho se comparado a fevereiro, um mês antes de decretada a pandemia. As vendas atingiram 23 dos 27 estados brasileiros. No Rio, por exemplo, a venda de bicicletas mountain bike de baixo custo foi o destaque e o chamado acesso orgânico de cariocas no site aumentou 112%.
– Se as pessoas se sentirem mais seguras para se deslocar nas cidades de bike, se tiverem mais opções de ciclovias, se empresas oferecerem estrutura para banho em suas sedes, mais gente vai entrar nessa onda e aí não terá mais volta – defende Rafael Papa, de 31 anos, um dos sócios da Semexe, empresa paulista criada em 2019. O empresário também defende que o governo adore incentivos fiscais para que modelos novos sejam barateados.
Segundo ele, como o mercado deixou de fabricar muitas peças e modelos durante a pandemia já começam inclusive a faltar opções nas lojas. A retomada do setor ainda não teria dado conta da demanda.
Para Daniel Guth, coordenador de projetos da Aliança Bike, Associação Brasileira do Setor de Bicicletas, e um dos responsáveis pela implementação e ampliação de novas ciclovias e ciclofaixas na cidade de São Paulo, o segmento nunca viveu algo semelhante.
Segundo ele, é possível cravar que novos usuários estão surgindo por dois motivos centrais: a busca por saúde e bem-estar e por uma alternativa ao transporte público.
– Uma coisa leva à outra, inclusive. A bicicleta é um ganho inequívoco de saúde e bem-estar e é hoje a opção mais segura, limpa e barata para se deslocar na cidade – defende.
Segundo levantamento da Aliança Bike, lojas e fabricantes de bicicletas nacionais e importadas tiveram suas vendas impulsionadas após uma queda de faturamento no inicio da pandemia. Em maio as empresas tiveram aumento de 50% de vendas se comparado com o mesmo período de 2019.
A Caloi/Canondale, principal fabricante do país, teve aumento nos negócios superior a 30% em relação a junho de 2019. E o crescimento tem sido em todas as categorias, dos modelos mais baratos aos esportivos.
A Lev, de bikes elétricas, também viu seu faturamento crescer em 16% ao se antecipar aos efeitos da pandemia e aumentar a produção feita na China antes de o vírus se disseminar pelo mundo.
Cyro Gazola, presidente da Caloi e vice-presidente da Abraciclo, reforça que esse movimento atual só será um caminho sem volta se tivermos uma mudança efetiva do desenho das cidades:
– A pandemia posicionou a bicicleta como uma solução. Mas sabemos que uma das principais barreiras é a segurança. Com mais ciclistas nas ruas, o efeito manada pode trazer mais segurança para quem pedala. Porém, para que o cidadão médio brasileiro adote cada vez mais o modal, é essencial que o poder público enxergue os benefícios da bicicleta e a inclua em suas políticas públicas de forma mais efetiva.
Além das vendas, o uso da bicicleta compartilhada também sugere algumas mudanças de comportamento.
A Bike Itaú fez um levantamento em maio e constatou que 16% dos usuários foram de profissionais da saúde e que mais de 87% optaram pela bike como prevenção ao novo coronavírus. Mais da metade usam o sistema de aluguel para ir e voltar do trabalho, e, em média, 90% dos usuários pretendem continuar ao fim da quarentena.
Benefício para a saúde
O cardiologista Fabrício Braga, diretor do Laboratório de Performance Humana da Casa de Saúde São José, diz que o uso constante da bicicleta, seja no deslocamento do dia a dia, seja na prática esportiva amadora e profissional, ajuda a diminuir eventos cardiovasculares como infartos, por exemplo.
Ainda que a prática for feita ao lado de carros e ônibus em grandes cidades com altas taxas de poluição do ar, o benefício, ele afirma, é maior do que o efeito do ar poluído.
– Será fantástico se essa mudança se traduzir numa prática (perene) da população, que vai viver mais e melhor – diz o médico, ressaltando um outro lado. – Para transformar a realidade da cidade, no entanto, é preciso ir muito além do que vender mais bicicletas. O ciclismo é o esporte que mais mata no mundo em números absolutos por causa da segurança. Sem preparação adequada, o número de acidentes vai aumentar.
Hugo Maçol, de 30 anos, trader em uma mesa de operações financeiras em São Paulo, trocou a bicicleta que já tinha. Aproveitou a pandemia para, finalmente, colocar a prática esportiva no seu cardápio diário.
Sem tempo para abraçar uma modalidade esportiva e preocupado com a saúde, adquiriu uma bicicleta mais bem equipada para pedalar até o escritório. Ele conta que pedala oito quilômetros, ida e volta, todos os dias. Quando vai de bicicleta, segundo ele, seu dia é mais produtivo. Ele se sente melhor e mais saudável.
– Já tinha vendido meu carro quando me mudei de Cotia para São Paulo, antes da pandemia. Mas, agora, troquei o modelo e pretendo usar a bike para tudo – diz Hugo, que foi de bicicleta para um drive thru de teste para Covid-19. – Este é um resgate para mim. Morei um ano na Alemanha, em Herford, quando tinha 16 anos. E lá, a cidade só anda de bicicleta.