Centenas de milhares de brasileiros que trabalham por aplicativos, como motoristas ou como entregadores, estão destituídos de direitos trabalhistas como salário mínimo, licença maternidade, limitação da jornada e férias remuneradas. Uma nova lei aprovada no estado americano da Califórnia está tentando regular esse novo tipo de trabalho e deveria incentivar a discussão sobre sua regulação no Brasil.
Os números impressionam: mais de 600 mil motoristas brasileiros estão cadastrados na Uber. Se fosse considerada uma empregadora tradicional, a Uber teria mais funcionários do que todas as 15 empresas que mais empregam no país somadas –gigantes como BRF, Vale, Seara, Itaú, JBS e Petrobras (dados do Caged). Apenas em São Paulo há cerca de 150 mil motoristas, algo como 2,4% de toda a força de trabalho da cidade. A essa multidão somam-se ainda cerca de 60 mil entregadores em moto que trabalham também em São Paulo para empresas como Rappi, Ifood, Loggi, além da Uber eats.
São Paulo é a cidade que mais faz viagens de Uber em todo o mundo e uma das cinco cidades (com Nova York, São Francisco, Los Angeles e Londres) responsáveis por um quarto da receita da empresa. O Brasil é o segundo maior mercado do Uber, depois dos Estados Unidos, com um faturamento anual de quase um bilhão de dólares.
Um novo livro lançado recentemente nos Estados Unidos, escrito pelo jornalista do New York Times Mike Isaac (Super pumped: the battle for Uber. W.W. Norton, 2019), resgata a agressiva trajetória da Uber, que lançou um produto revolucionário e desafiou e contornou a regulação estatal, inclusive recorrendo a expedientes de ética questionável, e conseguiu assim criar uma situação de fato incontornável.
A nova lei da Califórnia regulamenta e esclarece uma decisão da Suprema Corte do Estado que estabeleceu a diferença entre trabalho autônomo e emprego. Para ser considerado autônomo, o trabalho precisa cumprir três requisitos, conhecido como teste ABC: a) não ser controlado pela empresa; b) não ser central para o negócio da empresa; c) ser um negócio independente. Além de ser óbvio que transporte é o coração do negócio da Uber, ela também exerce controle sobre os motoristas, como exigir condições mínimas para o veículo, determinar a escala de pagamento e que rotas utilizar.
Para tentar escapar da obrigação de contratar seus motoristas como empregados, a Uber fez uma contraproposta à assembleia estadual da Califórnia, na qual assegurava a flexibilidade do trabalho autônomo, oferendo em troca pagamento compatível com o salário mínimo e alguns direitos, como falta remunerada por razões médicas e uma espécie de representação dos motoristas junto à empresa, criando algo análogo a uma negociação coletiva.
Regular esse tipo de trabalho, sem destruir o novo mercado não é tarefa simples.
A abordagem de alguns países europeus foi não flexibilizar a regulação anterior, fazendo com que a Uber não participe do mercado ou atue como uma espécie de serviço análogo ao de táxi.
Estimativas indicam que, se os motoristas da Uber forem contratados como empregados, o valor das corridas nos Estados Unidos deve subir 25%. No Brasil, onde os custos trabalhistas são mais altos, esse aumento seria substancialmente maior.
Além disso, a contratação de motoristas como empregados forçaria as empresas a reduzirem drasticamente o número de motoristas, contratando apenas aqueles que trabalham jornadas mais longas. Na condição de funcionários, os motoristas também teriam que se submeter a regras e a protocolos mais severos.
Alternativas a reclassificar o trabalho por aplicativo como emprego incluem estabelecer um piso de remuneração por hora, incluídos o tempo de espera e o deslocamento entre corridas. É o que fez, por exemplo, a regulação da cidade de Nova York. A oferta que a Uber fez ao estado da Califórnia mostra que, se há espaço para a inclusão de benefícios, como falta remunerada por razões médicas, pode haver espaço para outros benefícios, como a empresa pagar a contribuição previdenciária ou conceder dias de licença remunerada (férias) para quem dirige com frequência.
É mais do que justo que Uber e empresas similares retribuam com mais direitos aos milhões de trabalhadores que ajudaram a transformá-las em empresas globais. Isso é ainda mais premente agora que está claro –com o inevitável advento dos carros autônomos– que as empresas vão descartar os motoristas assim que não forem mais necessários para o seu negócio.
Dada a dimensão deste tipo de trabalho no Brasil e a completa vulnerabilidade dos trabalhadores, está mais do que na hora de começarmos a discutir formas apropriadas de regulação.
Pablo Ortellado – Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Folha de SP