O Diário do Transporte conversou nesta quarta-feira, 10 de abril de 2019, com Otávio Cunha, presidente executivo da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), entidade que reúne mais de 500 viações em todo o país.
Ônibus do sistema de transporte de Natal – Foto: Ilustração/UNIBUS RN |
A conversa girou em torno da importância da tecnologia para o setor do transporte coletivo, e até que ponto ela pode ser utilizada não somente para reduzir custos operacionais, mas principalmente para ajudar no redesenho dos sistemas de transporte.
Atualmente o segmento de transporte coletivo sobre pneus vive uma situação difícil: engessado por licitações que perduram por longos períodos, estas não permitem às empresas acompanharem as constantes mudanças da economia, as inovações tecnológicas e o comportamento dos passageiros. O poder concedente, por sua vez, tem enfrentado dificuldades imensas para elaborar os editais, como até mesmo para levar as licitações a bom termo. São Paulo é o exemplo mais recente, após anos de percalços e judicializações que atrasaram o processo por anos.
O advento das chamadas tecnologias disruptivas é o contraponto para essa realidade estática do setor: sem maleabilidade para alterar políticas tarifárias, nem agilidade no oferecimento de serviços que atendam melhor aos passageiros, as empresas de ônibus vêm sofrendo forte perda na demanda de passageiros, com um custo crescente em suas operações, o que coloca o próprio negócio, e portanto o serviço, em risco. Enquanto o usuário tem a cada dia mais liberdade de escolha do modo como pretende se locomover na cidade, o transporte coletivo fica preso a uma enorme falta de agilidade para atender às mudanças exigidas pelos seus clientes.
A experiência levada a cabo por Campinas, como o Diário do Transporte recentemente destacou (Campinas: a caminho de uma “moeda única” para a mobilidade urbana?), que prevê em sua próxima licitação incorporar as mudanças tecnológicas como uma marca que permita maior elasticidade ao segmento, é vista pelo dirigente da NTU como alvissareira.
Campinas ao longo de cinco anos conseguiu extinguir a função de cobrador, eliminar o dinheiro como forma de pagamento da tarifa dentro dos ônibus, e iniciar uma experiência nos meios de pagamento que pode, no futuro, permitir maior elasticidade ao sistema, integrando os ônibus a uma ampla rede mobilidade.
“A tecnologia do QR Code já é de domínio mundial, uma tecnologia que facilita em muito a vida da pessoa, simplifica bastante o sistema de bilhetagem hoje existente no Brasil. Além disso, ele permite armazenar uma quantidade imensa de informações. O passageiro pode comprar quantos créditos quiser, sem necessidade de ter de se deslocar, ou mesmo possuir um bilhete físico. Basta ter uma conta bancária, um cartão, além de um celular, para ter o sistema de transporte à sua mão”, exemplifica Otávio.
Ele cita o caso da China, onde a tecnologia está bem avançada, e pode servir como parâmetro para nossas experiências, apesar das diferenças nos sistemas de controle da economia.
De qualquer forma, o dirigente da NTU acredita que a tecnologia no mundo do transporte é algo que veio para ficar, e o setor não pode ficar indiferente a isso, “porque grandes mudanças estão para acontecer no mundo da mobilidade”, vaticina Otávio Cunha.
Ele cita como exemplo disso no país os serviços de transporte sob demanda, que começaram como serviços para atendimento individual e estão utilizando a plataforma para avançar no segmento coletivo. É o caso, segundo ele, das recentes ofertas de serviços como Uber Juntos, 99 Pop +, afirmando que o setor não pode ficar indiferente à essa situação.
Otávio faz um paralelo com o serviço de telefonia fixa, um setor que vivia sob a forte proteção do estado até meados dos anos 1990. “O telefone fixo era um ativo que você declarava no Imposto de renda, e hoje é praticamente peça de museu”, ele lembra. “Com a telefonia móvel introduzida no sistema, ainda que o serviço continue público e com alguma proteção, ele foi flexibilizado para determinadas práticas de mercado, de livre comércio, o que trouxe benefícios e facilidades para os consumidores”.
Para ele, com base na inovação e à introdução de novas tecnologias, o transporte público está diante de um desafio, e precisa inovar. Ele aponta como um case de inovação o lançamento em Goiânia do City Bus 2.0, “um serviço complementar ao transporte público regular, ofertado sob demanda com veículos de maior capacidade, 14 passageiros, que faz trajetos de curta distância, a um custo um pouco maior, mas com tarifas dinâmicas, pois a tecnologia permite isso”.
Para Otávio, o exemplo de Goiânia denota que é possível criar uma rede de transporte público que seja composta com serviços diferenciados. E assim como no caso da telefonia fixa, é possível inovar, e incorporar novos parceiros ao mercado de forma colaborativa em benefício da sociedade, ampliando os serviços e permitindo uma gama variada de tipos e valores que atendam a todos.
“Isso vai possibilitar que se possa ter aquele serviço básico regular de transporte coletivo, que é necessário existir para manter o caráter público da universalidade, do preço módico. Com o auxílio da tecnologia, é possível compor-se essa rede, preservando-se a rede básica, que terá sempre de existir, com um preço bastante acessível, e, complementarmente, melhorando a qualidade do serviço, e com custo mais elevado, você diluiria ofertando outras alternativas para consumidores que tenham maior capacidade de pagamento, e que consequentemente podem até estar, desta maneira, substituindo o automóvel particular”.
Otávio frisa bem: “serviços alternativos, complementares ao transporte público e que são diferenciados”, o que deixa implícito que não poderão ser serviços concorrenciais, que acabam tendo um caráter predatório e, no médio prazo, prejudicial à sociedade.
Voltando à questão das tecnologias, Otávio pondera que, por outro lado, não devem existir barreiras para sua aplicabilidade em prol da modernização e inovação do transporte público. Ele volta ao caso de Campinas: “o QR Code não pode ser ampliado para toda a rede porque os atuais contratos de concessão não permitem isso”.
Como o secretário de Transportes de Campinas, Carlos Barreiro, já havia adiantado ao Diário do Transporte, isso só será possível na nova licitação.
Otávio então aponta que esse é um ponto nevrálgico, que deve ser atacado pelos gestores públicos para que o transporte coletivo não fique engessado, prisioneiro de regras que não atendam às inovações que estão a todo o momento surgindo em todos os lugares.
“As novas licitações têm que estar abertas a avanços tecnológicos, ou ideias novas e disruptivas que venham a aparecer, e que possam ser incorporadas com a finalidade de melhorar a rede pública de transporte. A gente não pode criar barreiras”, diz ele.
Otávio Cunha defende que hoje não se pode mais pensar numa licitação isolada, que pense o ônibus apartado de outros modos de transporte que lhe são complementares, como o transporte ativo.
“Pensar a mobilidade da cidade requer estar aberto às inovações, às novas tecnologias, que precisam ser observadas pelo poder público como elementos que componham uma rede de transporte integrada, que possa trabalhar com diferentes modos de forma complementar”, afirma ele.
Otávio afirma que neste momento o setor de transporte precisa modificar e ampliar a visão, “é preciso ter a mente aberta, pois precisamos tornar esse serviço novamente atrativo às pessoas que precisam se locomover”.
Ele conclui dizendo que o transporte público coletivo sempre deverá existir, ele jamais será extinto, mas que precisa ser pensado de maneira a se tornar mais flexível para acompanhar a rapidez das mudanças.
“A rede pública tem que continuar tendo os controles necessários, mas precisa flexibilizar, criar a possibilidade de inovar, de ter novas formas de ofertar esse serviço, com complementariedade à toda rede de transporte”, define Otávio.
Ele cita alguns serviços que podem, de forma complementar, auxiliarem na formação de uma rede mais completa de transporte. “É o caso do fretamento, com atendimento especial para indústrias, para áreas da cidade onde se localizam centros industriais, você pode ter aí serviços especiais criados sob demanda para atender determinados nichos. Você também pode ter deslocamentos em áreas metropolitanas, determinadas linhas que poderiam ter ofertas de serviços sob demanda, considerando a distância. O caso do transporte escolar… enfim, várias alternativas que conformariam uma rede mais ampla e bem servida de transporte, algo dinâmico, não estático”, diz Otávio Cunha.
“Essas alternativas seriam operadas com tarifas diferenciadas, compondo uma ampla malha de transporte e mobilidade, mantendo-se por outro lado a rede básica, com custo baixo e com qualidade para torná-la novamente atrativa”, conclui o presidente executivo da NTU.
Otávio acredita que é possível “fechar essa conta”, garantindo que a costura de diferentes serviços de transporte, que funcionem de forma complementar, compondo uma ampla rede de ofertas para diferentes clientes, é a melhor saída para garantir a existência de um transporte básico a baixo custo e com qualidade.
“Mas para isso é preciso que o gestor público saiba utilizar a inovação e a tecnologia como ferramentas de construção dessa nova realidade. Sem isso, continuaremos falando da necessidade de se criar fundos para subsidiar o transporte”, afirma Otávio. Alterar o formato das futuras licitações é a primeira medida.
Diário do Transporte