Apps do tipo “juntos” podem destruir o transporte público?

Os primeiros resultados da pesquisa Origem-Destino 2017-2018 do metrô de São Paulo mostraram uma queda no número de deslocamentos por ônibus, de 9 milhões de viagens/dia em 2007 para 8,6 milhões/dia em 2017.
Divulgação/Mobilize Brasil

Segundo o estudo, embora parte importante desse contingente tenha migrado para o metrô e trens urbanos, uma parcela considerável pode estar deixando o sistema de transporte coletivo e passando a utilizar os carros de aplicativos, do tipo Uber e 99. Segundo a pesquisa, os paulistanos realizaram mais de 362 mil viagens por dia em carros operados por apps.
Os novos dados preocupam as empresas de ônibus e confirmam uma tendência nacional a certo esvaziamento dos sistema brasileiro de transportes coletivos urbanos sobre pneus. A situação, porém, parece estar se agravando com a entrada em cena de novas modalidades de aplicativos, como o Uber Juntos, em que vários passageiros compartilham o mesmo itinerário e “racham” o custo da viagem.
Na semana passada algumas operadoras de transporte começaram a notificar as prefeituras sobre a ilegalidade desse tipo de serviço, que consideram uma “concorrência ilegal e predatória”.
Regulação
“Não somos contra a entrada das novas tecnologias”, pontua Otavio Cunha, presidente-executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).  “O aplicativo que oferece o transporte individual, com aquele passageiro que tem origem e destino definido, é um serviço de utilidade pública e pode ser ofertado em qualquer cidade. O problema começa a aparecer com os novos serviços de apps, que permitem o transporte coletivo de pessoas. Isso caracteriza um serviço de transporte público e, por ser público, precisa estar regulado por meio de concessões. Não pode ser operado segundo a lei de livre mercado”, explica Cunha.
O representante da NTU lembra que qualquer sistema de transporte público opera dentro de uma lógica em que as linhas mais curtas e rentáveis compensam a manutenção das linhas de trajetos longos e de menor rentabilidade. Isso permite que o sistema tenha uma tarifa única em toda a cidade.
“O serviço de transporte público funciona regularmente durante todo o dia e até 24 horas por dia em algumas cidades, com ou sem passageiros. Os motoristas de aplicativos atuam somente nas áreas de maior demanda, em trajetos mais curtos e apenas nos horários de maior procura. Isso pode desequilibrar o sistema de ônibus, que já está perdendo passageiros”, justifica Cunha.
Ele cita o exemplo de Belo Horizonte, onde a 99 lançou serviço Pop, para atender a vários usuários, numa mesma rota. “Os carros atendem apenas na área delimitada pela avenida do Contorno (limites da BH original), das 6h às 22h, ou seja, em trajetos curtos, na área e horários de maior demanda”, explica. “Como empresários, nós estamos preocupados, porque a existência de qualquer serviço público deve atender às regras municipais para esses serviços; têm que passar por concessão e processo licitatório. Não podem ser ofertados sem essa regulação”, completa o presidente da NTU.
Na visão do diretor da NTU, a entrada dos carros de aplicativos no setor de transporte coletivo pode ser comparada à invasão de vans e microônibus irregulares que passaram a circular nas cidades brasileiras a partir dos anos 1990, e que exigiram uma forte ação do poder público até a reorganização do transporte coletivo, em 2005. Na época, kombis disputavam passageiros nas proximidades dos terminais de transportes e circulavam com as portas abertas em busca de mais clientes, sem qualquer controle das prefeituras.
ANTP prepara estudo
Não é exatamente o que avalia Luiz Carlos Mantovani Néspoli (Branco), superintendente da ANTP. Segundo ele, a situação agora é diferente, porque os apps são regulamentados e atuam dentro da legalidade.
Por outro lado, ele entende que, para os prefeitos, a chegada dos carros “tipo uber” pode ser uma saída emergencial naquelas cidades em que o sistema de transporte é deficiente.
“O problema é que os aplicativos significam uma solução individual para o passageiro, que resolve o seu problema de transporte, mas que oferece o risco de degradação do sistema coletivo e público de transporte”, argumenta.
Ele avalia que o uso dos aplicativos tende a expandir-se em função da falta de eficiência e conforto do sistema de ônibus do Brasil, e da baixa oferta de empregos formais. “A pessoa que está desempregada compra um carro, paga em prestações e vai buscar uma forma de subsistência, mas por quanto tempo será possível manter esse nicho de mercado em expansão?”, questiona o executivo da ANTP.
Para entender o que está acontecendo, a ANTP está iniciando um estudo baseado em duas cidades brasileiras para medir quantos passageiros estão migrando do transporte público para os aplicativos e entender as consequências dessa mudança.
Os especialistas da Associação acreditam que quanto mais gente passar para os carros, mais carros entrarão nas ruas, piorando as condições do tráfego e afetando também os ônibus, que ficarão retidos nos congestionamentos. Com isso, mais o custo relativamente elevado das tarifas, outros contingentes de passageiros deixarão o transporte coletivo, gerando um processo cíclico de degradação.
“A cidade perde qualidade de vida, os passageiros perdem tempo, os empresários perdem competitividade e todo o sistema de mobilidade seria deteriorado”, projeta Branco. Essas hipóteses serão testadas no futuro estudo, que deverá ter seus primeiros resultados em marco/abril de 2019.
Apps tendem a ocupar todas as ruas
O engenheiro Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes de São Paulo, acredita que o espaço ocupado pelos automóveis é que será o grande limitador para a expansão dos apps coletivos. “Antes de mais nada, temos que distinguir o transporte coletivo do transporte individual compartilhado. Um carro de aplicativo vai transportar quatro, no máximo cinco pessoas, e elas ocuparão 1/5 do espaço que seria ocupado por uma pessoa sozinha em um carro. Mas, mesmo assim, cada passageiro de carro vai ocupar 20 vezes o espaço de uma pessoa em um ônibus articulado. Então, o carro, mesmo compartilhado, usa muito mais espaço e, quanto mais carros, mais espaço será necessário. Daí eu pergunto: o sistema viário terá capacidade de absorver tudo isso? Não terá. Então, a situação do tráfego e do transporte poderá ficar pior do que hoje”, conclui.
Gregori lembra também que todos os motoristas de aplicativos utilizam os recursos de orientação do tipo Waze para guiar nas cidades. “São ótimas ferramentas, mas para fugir dos congestionamentos elas induzem o motorista a seguir por caminhos tortuosos, em ruas residenciais, até então livres do trânsito. Essa combinação de aplicativos levará o tráfego pesado a ocupar todas as ruas das cidades, mesmo aquelas que hoje são tranquilas, com pouco tráfego”, calcula o engenheiro.
Espaço ocupado por diferentes modos de transporte nas cidades Ilustração: Marilia Hildebrand/ Fonte: ITDP
Nova York
A preocupação dos empresários da NTU encontra lastro em algumas experiências internacionais. Matéria publicada pelo Diário do Transporte, em agosto passado, revela que a prefeitura de Nova York havia suspendido novas licenças para o Uber e já estava buscando formas de regulamentar os serviços dos aplicativos de carros na cidade. 
O texto cita um estudo realizado pelo consultor de trânsito Bruce Schalle, segundo o qual o número de pessoas que passaram a usar Uber e Lyft cresceu 37% entre 2016 e 2017, subindo de 1,9 bilhão para 2,61 bilhões de viagens em cidades dos Estados Unidos.
O efeito provocado pelo aumento do uso de veículos foi mensurado pelo analista, que concluiu que os aplicativos adicionaram 5,7 bilhões de milhas (cerca de 9,2 bilhões de km) a mais de corridas às ruas dessas cidades, o que representa um aumento geral de 160% no tráfego local. Mais: 70% das viagens de Uber e Lyft estão em nove grandes áreas metropolitanas densamente povoadas: Boston, Chicago, Los Angeles, Miami, Nova York, Filadélfia, São Francisco, Seattle e Washington DC. Essas nove áreas representaram 1,2 bilhão de corridas.
Ainda segundo esse trabalho, os motoristas de empresas de aplicativos gastam muito do seu tempo trafegando vazios, ou seja, perfazem uma quilometragem adicional quando o veículo está à espera de uma chamada ou quando dirigem para buscar um novo passageiro.
Bruce Schalle identificou ainda que os apps competem com o transporte público, e não com carros particulares. “As pesquisas indicam que em 60% das vezes que as pessoas optaram por Uber ou Lyft, elas poderiam ter escolhido usar o transporte público, caminhado ou a bicicleta, caso não tivessem acesso ao serviço.”
“Uber Juntos não é transporte coletivo”
Consultada, a Uber colocou em questão “alguns levantamentos divulgados recentemente nos Estados Unidos (…) porque, além de não representarem a realidade das cidades brasileiras, apresentaram falhas de escopo ou de metodologia, que prejudicam suas conclusões”.
Na resposta enviada por e-mail ao Mobilize Brasil, a empresa reiterou que o Uber Juntos não é uma modalidade de transporte coletivo, mas um sistema que combina viagens individuais com trajetos convergentes para compartilhar o mesmo veículo, aumentando a eficiência do modelo.
Na nota, a empresa argumenta que o Uber Juntos foi criado para colocar mais pessoas em menos carros: “…a tecnologia conecta usuários que têm percursos individuais parecidos, driblando o trânsito ao pedir que os usuários caminhem alguns minutos para encontrar o motorista. Ao tornar o uso do automóvel mais eficiente, a Uber acredita que o Juntos complementa o transporte público, ampliando o acesso dos usuários à rede pública principalmente na região central –  exatamente onde existe maior necessidade de diminuir o fluxo de carros.”
Na mensagem, a Uber cita uma pesquisa da Universidade de Toronto, publicada em novembro de 2018 no periódico científico “Journal of Urban Economics”, que reforça seus argumentos. O estudo identificou um impacto positivo da Uber em relação ao transporte público de cidades americanas, elevando o número de passageiros em 5%, em média, em um período de dois anos. A empresa citou também um estudo da American Public Transportation Association, cujas conclusões indicam um efeito positivo dos serviços compartilhados também para o transporte público: quanto mais pessoas usam carros e bicicletas de apps, maior a probabilidade de usarem o sistema público.
Ainda na resposta, a empresa de aplicativos afirma que o objetivo da tecnologia é reduzir a dependência do automóvel particular ou a necessidade de vagas de estacionamento nas vias, além de ampliar o alcance do transporte público, em viagens de conexão entre estações de transportes e os destinos finais dos usuários.
Qualidade desejável
Otávio Cunha, da NTU, reconhece que os serviços de ônibus urbanos no Brasil “ainda estão longe da qualidade desejável, tanto em conforto como em eficiência”. Mas lembra que as empresas do setor estão trabalhando junto com os novos governos para buscar melhorias a curto e médio prazo. O presidente da NTU explicou que a associação está alertando as autoridades sobre os problemas que os apps de uso coletivo poderão gerar e já enviaram um comunicado formal à Frente Nacional de Prefeitos (FNP) sobre o problema. “Não se trata de uma questão corporativa, que interessa apenas ao empresariado. Trata-se de defender um serviço fundamental para o funcionamento das cidades e que interessa a todos”, completou. O Mobilize tentou ouvir a FNP, mas até o fechamento deste texto a entidade não havia respondido à reportagem.
Mobilize Brasil

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