Como linha de transporte virou a obra inacabada mais cara da Copa do Mundo no Brasil

Anunciado pelo então governador do Estado, Silval Barbosa (na época no MDB), como o melhor meio de locomoção para torcedores que fossem aos jogos sediados na capital mato-grossense, o VLT nunca chegou a transportar passageiros.
Vagões do VLT estão parados em estacionamento desde novembro de 2013 – EMANOELE DAIANE/BBC BRASIL

O Estado investiu, até o momento, R$ 1,066 bilhão na construção do meio de transporte, que está paralisada. Somente 30% das obras físicas foram executadas até hoje. Envolto em esquemas de corrupção e alvo de operação da Polícia Federal, o VLT tornou-se a obra incompleta mais cara da Copa no Brasil.
A duas semanas de mais um Mundial de futebol, desta vez na Rússia, a construção, marcada por um enredo que mistura promessas frustradas, uma sequência de atrasos, corrupção e brigas na Justiça, nem sequer tem previsão para ser retomada.
Aposta alta
Em 2009, pouco após o anúncio da cidade como uma das sedes da Copa, era dado como certo que a obra de mobilidade urbana seria o Bus Rapid Transit (BRT) – sistema de ônibus rápidos. O meio de transporte era visto como o mais adequado, em custos e benefícios, para a região metropolitana de Cuiabá.
Em 2011, porém, logo após ser eleito governador de Mato Grosso, Silval Barbosa mudou os planos e determinou a construção do VLT. As obras foram orçadas em R$ 1,2 bilhão – posteriormente, o valor subiu para R$ 1,4 bilhão –, cerca de R$ 700 milhões a mais do que o estimado com o BRT.
Tratava-se então da terceira obra de infraestrutura para o evento mais cara do país. À frente, estavam apenas a construção do BRT carioca, que custou R$ 1,6 bilhão, e a reforma do Aeroporto Internacional de Guarulhos, avaliada em R$ 2,3 bilhões, ambas entregues antes do evento.
Para o engenheiro civil Miguel Miranda, doutor em transporte, o Veículo Leve sobre Trilhos tornou-se um problema difícil de ser solucionado.
“O VLT começou errado e vai dar errado até o fim. É um projeto de modal incompatível com o custo de manutenção. Ele tem uma capacidade muito maior que a da cidade. Para a região metropolitana de Cuiabá, o ideal seria o BRT”, afirmou à BBC Brasil.
Segundo o projeto, o modal deveria ter duas linhas – uma delas ligando o aeroporto ao Centro Político Administrativo, onde estão concentrados os Poderes do Estado. A outra levaria do bairro Coxipó ao Porto, região tradicional de Cuiabá. Ao todo, seriam 22 quilômetros de trilhos. No trajeto, foram planejadas 33 estações de embarque e desembarque, além de três terminais de integração.
A estimativa era de que o veículo transportasse 160 mil pessoas por dia – segundo estimativa do IBGE, toda a região metropolitana tem cerca de 1 milhão de habitantes.
Os recursos para as obras vieram do Estado, que obteve empréstimo na Caixa Econômica Federal. Hoje, o governo diz pagar parcelas de aproximadamente R$ 13,9 milhões mensais, valor que inclui juros e correção monetária.
Canteiros abandonados ficam em avenidas importantes da região metropolitana de Cuiabá – EMANOELE DAIANE/BBC BRASIL
Atrasos sucessivos
Após licitação, as obras ficaram a cargo do Consórcio VLT, formado pelas empresas CR Almeida, Santa Bárbara, CAF Brasil Indústria e Comércio, Magna Engenharia Ltda e Astep Engenharia Ltda.
A construção foi iniciada em junho de 2012. Os 280 vagões do veículo, divididos em 40 composições, começaram a chegar à cidade em novembro do ano seguinte. A expectativa era de que as obras fossem concluídas em março de 2014 e que o veículo estivesse em circulação antes do início da Copa.
Meses antes do megaevento, no entanto, a construção havia avançado pouco. Diante disso, o governo estadual chegou a cobrir os canteiros de obras com grama para, segundo a gestão da época, melhorar o aspecto visual das avenidas no período em que a capital sediaria quatro jogos do Mundial.
Silval Barbosa sabia desde meados de 2013 que o modal não estaria em funcionamento durante a Copa, mas continuou dizendo que as obras estavam dentro do cronograma. Apenas nos primeiros meses de 2014 ele confirmaria que o veículo não ficaria pronto antes do Mundial – prometeu, então, que a inauguração ocorreria até o fim daquele ano.
Em março de 2014, o Estado concedeu um aditivo de 12 meses para a conclusão da obra e implantação do modal. Mas em meados do mesmo ano, o consórcio passou a enviar ofícios ao governo informando que os repasses estavam atrasados. Mais tarde, notificou a gestão de que pararia as obras caso os pagamentos não fossem feitos.
Diante do imbróglio, Silval determinou ele mesmo a paralisação da construção antes de deixar o governo. Desde então, elas nunca mais avançaram. Apenas nove quilômetros de trilhos haviam sido implantados, e os vagões permanecem no estacionamento onde foram colocados desde que chegaram a Mato Grosso, sob os cuidados do Consórcio VLT.
Segundo o atual governo, comandado por Pedro Taques (PSDB), os veículos ainda estão novos e em bom estado de conservação. Mas para especialistas, como o engenheiro civil Miguel Miranda, eles representarão mais custos caso o modal seja de fato concluído. “Em dois anos, pelo menos a parte eletroeletrônica deverá ser quase toda reformada”, diz.
Longa negociação
O atual governador de Mato Grosso era um ferrenho crítico à implantação do VLT. Mas nas eleições de 2014, que acabaria vencendo, prometeu concluí-lo em sua gestão. Em janeiro seguinte, ao assumir o cargo, determinou a abertura de negociações com o Consórcio VLT para a retomada das obras.
Em abril do mesmo ano, o contrato acabou suspenso pela Justiça por causa da falta de entendimento entre as partes. Durante as negociações, o consórcio apresentou quatro propostas diferentes de reajuste entre abril de 2015 e dezembro de 2016 – os valores foram de R$ 993 milhões, R$ 1,04 bilhão, R$ 1,494 bilhão e, por último, R$ 977 milhões.
Em agosto de 2015, o governo obteve autorização da Justiça Federal para contratar uma auditoria independente para investigar o contrato e apontar o valor correto para a retomada. Um dos entraves nas negociações eram as cinco ações judiciais movidas pelo Estado contra o consórcio, incluindo processos por improbidade administrativa e pedindo indenização à sociedade.
Em março do ano passado, as duas partes finalmente chegaram a um acordo. Ficou determinado que as obras seriam retomadas três meses depois e concluídas em 24 meses, sob o valor de R$ 922 milhões, sendo R$ 327,2 milhões referentes a passivos do contrato original – com isso, o VLT teria um custo final de R$ 1,988 bilhão. Além disso, o Estado deveria extinguir as ações judiciais que envolvessem o Consórcio VLT.
Mas o novo acordo acabaria não indo adiante. Os Ministérios Públicos Estadual e Federal apontaram diversas irregularidades no contrato e determinaram a suspensão do acordo.
A BBC Brasil tentou, por um mês, entrevistar o governador de Mato Grosso sobre o VLT. A princípio, sua assessoria informou que Taques não tinha horário em sua agenda. Posteriormente, a equipe do tucano afirmou que ele não comentaria o assunto neste momento.
Procurado pela BBC Brasil, o Consórcio VLT informou que está à disposição do Estado para chegar a uma conciliação. O grupo de empresas informou que está impedido de falar sobre a questão, pois o caso está na Justiça.
“O Consórcio segue à disposição das autoridades, como sempre o fez, para quaisquer esclarecimentos que vise o objetivo público maior e legítimo: a retomada e conclusão das obras do VLT, para uso da população”, disse, em nota.
Ex-governador na prisão
Em agosto passado, a obra do VLT foi alvo de uma operação da Polícia Federal baseada em investigações do Ministério Público Federal.
A ação, denominada Descarrilho, teve como partida depoimentos do ex-governador Silval Barbosa à PF. O político havia sido preso em setembro de 2015 pela operação Sodoma, que apura a existência de uma organização criminosa que cobrava propina de empresários para manter contratos com o Estado durante sua gestão.
Barbosa ficou um ano e nove meses na cadeia. Em junho do ano passado, obteve o direito à prisão domiciliar, mediante uso de tornozeleira eletrônica, após confessar diversos crimes que cometeu enquanto era governador. Ele também entregou R$ 46 milhões em bens e, mais tarde, deixou o MDB.
Ele é alvo de mais de dez ações na Justiça por crimes contra os cofres públicos. Em uma delas, em dezembro, acabou condenado a 13 anos e 7 meses de prisão por comandar um grupo que desviou mais de R$ 2,5 milhões por meio de fraudes em incentivos fiscais. No mês passado, sofreu nova condenação, desta vez a 14 anos e 2 meses, por fraudes na compra de um terreno de R$ 13 milhões, adquirido por meio de propinas.
Nos depoimentos à PF, o ex-governador confessou que a troca do BRT pelo VLT foi uma forma de conseguir desviar dinheiro. Ele negou que tenha havido direcionamento na licitação referente ao VLT, mas afirmou que “independentemente de quem vencesse, o grupo político procuraria o consórcio vencedor para negociar um ‘retorno'”.
Segundo as apurações da Procuradoria, propina foi paga ainda durante as obras. Na fala aos investigadores, Barbosa disse que seu grupo político recebeu cerca de R$ 18 milhões.
A operação Descarrilho não teve nenhum desdobramento até o momento. Procurado pela BBC Brasil, o Ministério Público Federal em Mato Grosso informou que não poderia dar detalhes porque as investigações seguem em segredo de Justiça. O Consórcio VLT, por sua vez, diz que não comenta mais o caso. Na época da ação policial, negou em nota ter participado de qualquer esquema criminoso, “mantendo-se à disposição da Justiça e autoridades competentes para quaisquer esclarecimentos”.
Em outubro passado, o atual governador anunciou a quebra unilateral do contrato, para “acautelar e resguardar o Estado de mais prejuízos”. Em janeiro, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso concedeu liminar ao Consórcio VLT e suspendeu essa rescisão, mas Taques manteve a suspensão. O caso segue na Justiça.
Na Justiça Federal, tramita uma ação proposta pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual com pedido de indenização de R$ 148 milhões ao Estado por dano moral coletivo causado pela troca do BRT pelo VLT e pela demora para a conclusão da obra. São alvos Barbosa, o ex-secretário estadual da Copa, Maurício Guimarães, o Consórcio VLT e as empresas o compõem.
Em depoimento à Justiça Federal, o ex-governador afirmou que tinha a boa intenção de entregar todas as obras da Copa, mas que os procedimentos da gestão pública são muito difíceis e dificultaram a conclusão do VLT.
Procurada pela reportagem, a defesa do político informou que não comentará o caso e disse que as afirmações de seu cliente sobre o VLT estão nas declarações dele à Polícia Federal.
Segundo especialista, vagões ainda não usados precisariam de reformas – EMANOELE DAIANE/BBC BRASIL
Conclusão incerta
Diante do impasse com o Consórcio VLT, não há data para que uma nova licitação seja lançada.
O secretário-adjunto de obras do VLT, José Piccolli Neto, prefere não estipular um prazo de entrega do serviço à população.
“Se começar a construir hoje, o prazo para terminar seria, no máximo, de 24 meses. E depois teria o tempo para entrar em operação. Porém, ainda não sabemos quando será lançada a nova licitação, mas esperamos que seja o mais rápido possível.”
A expectativa é de que, caso entre em funcionamento, o modal seja gerido por meio de parceria público-privada (PPP). Cada passagem deve custar o mesmo valor cobrado nos ônibus de Cuiabá, R$ 3,80.
Segundo Piccolli, o Estado prefere não divulgar quanto deve custar a conclusão da obras. “Como estamos em um processo de licitação, isso pode ficar como parâmetro para colocarem esse valor como base”, disse.
“Mas é importante destacar que o valor das obras iniciais incluía o fornecimento de trem, de trilhos, de cabos, de postes e de subestações. Esses equipamentos já estão todos no canteiro de obras. Você não precisa comprar nada. O que precisamos agora é de mão de obra. É montar. Além disso, as estações, os centros de comando, os viadutos já estão prontos.”
Atual governo garante que levará a obra adiante, mas há quem duvide – EMANOELE DAIANE/BBC BRASIL
Piccolli garante que a possibilidade de o Estado desistir do VLT e retomar a ideia de construir o BRT, como já chegou a ser cogitado por Taques, não faz parte dos planos do governo.
“Nós temos, ali, mais de 300 milhões de euros em equipamentos. Não somos loucos de deixá-los parados. Estamos procurando fazer um negócio com seriedade e responsabilidade. Não queremos fazer lambança igual foi feito anteriormente, não. Muito pelo contrário”, afirma.
Mas, na avaliação do engenheiro Miguel Miranda, o alto custo poderá levar o Estado a desistir do modal.
“Com correções cambiais, reajustes e itens que ainda faltam ser pagos, como desapropriações, a obra não sai por menos de R$ 2,1 bilhões. Ou seja, o preço inicial aumentou, praticamente, 70%. Quem é o governador que vai ter coragem de tirar esse projeto do papel e fazer isso a esse preço?”
BBC Brasil

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