Tentativas de fraude no seguro DPVAT chegam a R$ 1 bilhão

Direito de todo brasileiro envolvido em acidentes de trânsito, o seguro DPVAT tem sido alvo de tentativas sistemáticas de fraudes cometidas por pessoas comuns e quadrilhas especializadas, que lesam as vítimas. Apenas em 2017, a Seguradora Líder, responsável pela operação do benefício, negou mais de 175 mil pagamentos indevidos, que movimentariam R$ 994 milhões.

Desse total, pelo menos 17.550 constituem tentativas de fraudar o seguro, constatadas por apuração in loco de funcionários, que evitaram o desvios de R$ 222,9 milhões. O detalhamento obtido pelo GLOBO sobre esse tipo de crime chama a atenção no mês em que o debate sobre acidentes de trânsito é incentivado pelo movimento Maio Amarelo.
De acordo com dados da Líder, mais de 70% dos golpes envolvem o uso de documentos falsos, como laudos médicos, boletins de ocorrência da Polícia Civil e registros de acidentes feitos por autoridades de trânsito.
O aumento no número de fraudes detectadas ocorre depois de o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Superintendência de Seguros Privados (Susep) constatarem falhas de fiscalização por parte da seguradora.
O marco para essa constatação é 2011, quando o Ministério Público Federal (MPF) de Minas Gerais identificou um esquema de desvios na região de Montes Claros, no norte do estado. Em 2015, foi a vez de o Ministério Público estadual identificar irregularidades na cidade mineira. O órgão deflagou, em parceria com a Polícia Federal, a Operação Tempo de Despertar, que prendeu provisoriamente 41 pessoas, entre elas, advogados, médicos e policiais civis e militares.
Um acórdão do TCU, de 2016, apontou diversos problemas no controle exercido pela Susep sobre a operação do DPVAT. O tribunal estima que apenas em acordos judiciais de caráter antieconômico podem ter sido gastos até R$ 1 bilhão.
Procurada, a Susep afirmou que, desde que a nova direção do órgão tomou posse, em julho de 2016, estão sendo tomadas diversas medidas para melhorar a fiscalização externa do DPVAT, que resultaram em duas reduções seguidas nos valores cobrados dos proprietários de veículos. Em março foi criada uma comissão para discutir mudanças na concessão do seguro. O grupo vai apresentar um novo modelo ao Conselho Nacional de Seguros Privados. A previsão é que isso ocorra em julho.
O presidente da Líder, Ismar Tôrres, diz, em relação à constatação do TCU, que a fiscalização é indireta, apontando uma série de aspectos que demandam atenção da Susep. Desde que a nova gestão assumiu, afirma, foi feita uma revisão da política de acordos da companhia para atender às recomendações do TCU:
— Temos uma nova abordagem sobre o assunto, porque entendemos que era hora de trabalhar de uma forma diferente nos mutirões de acordo e nos eventos de conciliação do Tribunal de Justiça. O objetivo é não estimular novos litígios, e nossa nova política tem buscado isso.
ARRECADAÇÃO DE R$ 5,9 BI
O DPVAT é pago obrigatoriamente por todos os proprietários de veículos do país, e oferece cobertura para motoristas, passageiros e pedestres feridos em acidentes. Os valores pagos são tabelados e crescentes, chegando a R$ 13,5 mil para mortes e casos de invalidez permanente. As quantias estão congeladas há 11 anos, segundo a Líder.
Em 2017, o seguro arrecadou R$ 5,9 bilhões, dos quais 45% (R$ 2,67 bilhões) vão para o Sistema Único de Saúde (SUS) e 5% para o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Os R$ 2,97 bilhões restantes são usados principalmente para o pagamento das indenizações, valor disputado também pelos golpistas.
O pente-fino nos pedidos de pagamentos do DPVAT tem resultado numa queda expressiva do número de indenizações desde 2014, quando foram feitos 763.365 pagamentos. Em 2017, esse número caiu para 383.993 indenizados. Segundo Arthur Froes, superintendente de sinistros da Líder, essa tendência tem relação com a fiscalização:
— Uma parcela significativa dessa redução está relacionada ao combate às fraudes.
A principal aliada nessa tarefa tem sido a tecnologia. Foi implantado um sistema de Big Data no âmbito do DPVAT para flagrar padrões suspeitos nas solicitações de pagamentos. O sistema usa dados de sinistros comunicados desde 2008 para avaliar as ocorrências com mais chances de esconderem irregularidades, com base em mais de 200 parâmetros avaliados por um robô. Os casos considerados críticos são direcionados ao setor de fiscalização, que envia profissionais ao local para apurar possíveis desvios. Apenas em 2017, esse trabalho resultou na apresentação de aproximadamente 1.460 notícias-crime.
NO CEARÁ, A VICE-CAMPEÃ DE FARSAS
Deflagrada em abril deste ano, uma operação do Ministério Público do Ceará desbaratou quadrilhas que operavam a partir de três escritórios especializados no recebimento de indenizações do DPVAT em Boa Viagem, cidade de apenas 54 mil habitantes no interior do estado.
A ação sistemática dos criminosos teve impacto real sobre o benefício: em 2016 e 2017, o pequeno município cearense registrou o segundo maior número de fraudes identificadas pela Líder, atrás apenas de Montes Claros, cidade do norte de Minas considerada a meca desse tipo de golpe. Somente os fatos investigados na operação gerariam um dano de R$ 230 mil ao seguro. Oito pessoas foram presas; e 11 mandados de busca e apreensão, cumpridos.
Segundo o promotor Marcos William, do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), a investigação foi iniciada em maio de 2017 a partir de denúncias da seguradora. Funcionários dos três escritórios aliciavam pacientes de hospitais da região, apresentando-se como facilitadores para a obtenção do benefício. Um médico participava do grupo e emitia laudos médicos falsos, exagerando as lesões sofridas pelas vítimas para ampliar a indenização. Às vezes, o médico atendia os pacientes nos próprios escritórios, e em outras nem sequer os examinava.
O grupo também contava com a participação de um servidor da Polícia Civil, que registrava ocorrências sem o comparecimento das vítimas, apenas com base no relato de funcionários dos escritórios. Também participava das fraudes um membro da Guarda Municipal de Boa Viagem, responsável por relatórios circunstanciados de acidente falsificados.
Com os três documentos em mãos, os escritórios obtinham indenizações muito acima dos valores que as vítimas receberiam sem fraudes. Os documentos falsos podiam sustentar uma invalidez permanente, que rende R$ 13,5 mil, quando a vítima na verdade só havia sofrido danos leves. O reembolso por despesas médicas em casos menos graves chega a no máximo R$ 2,7 mil.
O mesmo modus operandi foi encontrado em investigações de autoridades de outros estados, como Minas Gerais, o que, na opinião do promotor Marcos William, demonstra que as fraudes são realizadas por diversos núcleos em âmbito nacional. Ele afirma que as vítimas de acidentes também eram prejudicadas pelos golpistas.
— Todos os pacientes tinham sofrido um acidente leve, e os fraudadores davam maior proporção a isso. Muitas pessoas aliciadas relataram que nunca receberam nada. Acabavam assinando papéis no hospital sem terem ideia do que ocorreria — explica o promotor. — Além do golpe no próprio seguro, os fraudadores também enganavam as vítimas.
‘MALHA FINA CONTRA IRREGULARIDADES’
Alçado ao comando da seguradora Líder em dezembro de 2016, em meio a críticas no controle do seguro DPVAT, Ismar Tôrres, presidente da empresa, destaca mudanças em sistemas de controle e de acordos judiciais.
O GLOBO: O que mudou na estratégia de combate às fraudes no DPVAT?
ISMAR TÔRRES: Na nova gestão, temos intensificado muito o uso da tecnologia para ajudar no combate à fraude. Não é que não houvesse tecnologia antes, mas reforçamos isso. Levamos em conta um conjunto muito mais variado. Por isso, nossa malha está ficando cada vez mais fina para flagrar essas fraudes contra o DPVAT. Costumam falar que os fraudadores estão sempre dois passos à frente. Mas agora demos dez passos de uma vez.
Que tipo de indício o sistema interpreta como possível fraude?
Um único médico que emitiu uma grande quantidade de laudos é uma suspeita para nós de que algo está errado, por exemplo. O mesmo quando um procurador tem um volume de pedidos muito maior que os demais. Avaliamos isso com base também nas fraudes que já ocorreram desde 2008.
Além do controle sobre os pedidos, o que a Líder tem feito para evitar o envolvimento de membros das seguradoras em esquemas?
Não existe até o momento nenhum colaborador identificado participando de fraudes contra a própria seguradora. Temos uma rede muito grande que faz perícias médicas nas vítimas, com cerca de dois mil médicos que prestam serviços para empresas contratadas pela Líder. Pode ser que exista algum que cometa fraudes. Internamente, nós reforçamos muito a área de compliance.
Além de receber recursos do DPVAT irregularmente, parte dessas quadrilhas lesa as vítimas de acidentes. Como esclarecer a população para ajudar a reduzir o problema?
Já no segundo semestre vamos fazer novas campanhas para esclarecer a população sobre os direitos que ela tem, as categorias do DPVAT e os pontos de atendimento que devem procurar para dar entrada nos pedidos de indenização. Quanto mais esclarecimento levarmos para a população, mais melhora a situação. Temos desenvolvido esforços junto à Susep e ao Conselho Nacional de Seguros Privados para destinar uma verba mais robusta para levarmos essa informação constantemente aos brasileiros. Isso vai ajudar a evitar, cada vez mais, a figura dos intermediários e procuradores; impedir que as vítimas caiam na mão dessas pessoas inescrupulosas, que se colocam como facilitadoras, mas acabam ficando com parte do benefício.
Foto: Nilton Cardin / Photo Premium / Agência O Globo
O Globo

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