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Foto: Divulgação |
Uma música antiga de Caetano Veloso, composta em seus tempos de exílio em Londres, dizia: “Everybody knows that our cities were built to be destroyed” (todo mundo sabe que nossas cidades foram feitas para serem destruídas).
O furacão Harvey torna a letra da canção uma instigante realidade. Sim, ainda mais quando a cidade é Houston, no Texas, uma das cidades americanas onde os habitantes mais dependem do automóvel para se locomover. E olha que por anos os gestores públicos tentaram implementar um sistema de transporte mais eficiente, o que de nada adiantou: quase 95% das famílias da cidade mais populosa do estado do Texas, a quarta maior dos EUA, possuem pelo menos um carro. A média por lá é de 1,8 carro por habitante. Quase 91% dos usuários do metrô da cidade viajam sozinhos de carro para ir ao trabalho.
Mas com a chegada do furacão Harvey algo entre 500 mil e 1 milhão de carros foram destruídos pela tempestade, a maior dentre todos os desastres naturais da história dos EUA.
Após a tempestade não veio a bonança, como diz o provérbio. Veio a destruição, e o triste desafio de que é preciso descobrir outras maneiras de chegar ao trabalho, às casas destruídas e às escolas dos filhos.
Houston foi uma das cidades mais atingidas pelo Harvey, que destruiu pelo menos 40 mil casas na cidade de pouco mais de 2 milhões de habitantes. Houston tem uma área metropolitana com 5,9 milhões de pessoas e milhões de carros em circulação.
Em meio à tormenta, a solução foi ele, o velho transporte por ônibus.
O sistema de transportes de Houston é operado pela empresa METRO, que possui um VLT (o MetroRail, sistema de trens ligeiros) que opera ao nível da superfície, com três linhas que funcionam do coração da cidade a alguns distritos. Além desse serviço, o METRO opera também com linhas de ônibus, que abrangem uma área bem maior da cidade, com uma frota de cerca de 1.200 ônibus.
Após o pior da tormenta, o METRO se posicionou como um recurso para as vítimas da tempestade. Através das mídias sociais, canais de notícias locais e diretamente em linha com as equipes de apoio, os funcionários da agência passaram a dar informações sobre rotas de ônibus e linhas do trem ligeiro. Antes da tempestade, o METRO realizou uma revisão completa da rede de ônibus, indicando rotas de alta frequência que ajudaram a salvar inúmeros passageiros que tinham dificuldades de fugir do furacão.
Uma pesquisa recente mostrou que a maioria dos habitantes da cidade não havia pisado num ônibus sequer uma vez no ano anterior. Christof Spieler, membro do conselho da diretoria do METRO e professor de arquitetura e urbanismo na Universidade de Rice, disse à imprensa ser incrível como poucas pessoas conhecem alguns dos serviços de transporte prestados pela empresa.
Passada a tempestade, o custo de comprar um carro novo pode ser um grande êxito, diz Spieler. Mas ele acredita que o transporte público é a melhor opção: “se podemos ajudar as pessoas, deixando-as fazer o que precisam para transitar sem ter que pedir dinheiro emprestado a taxas exorbitantes para comprar um carro que pode muito bem não ser confiável – então essa é uma das coisas que queremos fazer”.
Nem todos os que perderam um carro em Harvey acharão fácil mudar. O METRO cobre apenas cerca de dois terços do Condado de Harris, onde se situa Houston, e algumas áreas fora dele.
A mobilidade urbana passará assim a assumir um papel mais importante na recuperação a longo prazo da região. Com o estoque de habitação a preços mais acessíveis destruído em toda a área, a discussão em breve se voltará para onde os investimentos em infraestrutura devem ser direcionados.
Logo, uma importante pergunta que terá de ser respondida pelas autoridades e população de Houston é: a cidade deverá ser reconstruída em locais onde há uma boa oferta de modos de transporte? E como ofertar mais transporte a áreas onde ele ainda não está presente?
Incentivar o desenvolvimento perto de conexões de transporte coletivo não é apenas incentivar mais habitantes da cidade a optar por não usarem seus carros: um sistema de transporte robusto pode ajudar os bairros a se recuperar de choques e desastres mais rápidos.
E a lição da tormenta, pelo menos para a mobilidade urbana da cidade, quem resume é o arquiteto Christof Spieler: “Você descobre em um evento como Harvey que existem padrões de desenvolvimento que são mais resilientes do que outros. Nos bairros onde é mais fácil usar o transporte coletivo ou caminhar ou andar de bicicleta, seja o centro de Houston ou um subúrbio bem planejado, não ter gasolina no tanque ou ter seu carro inundado não é tão grave, porque você pode se locomover de outras maneiras”.
Diário do Transporte