As cidades precisam dificultar o uso dos carros e cortar estacionamentos em ruas. Mais: não é papel do governo encontrar solução para os problemas das pessoas que usam carros. Esta é a opinião de Enrique Peñalosa, colombiano especialista em mobilidade urbana e ex-prefeito de Bogotá, capital da Colômbia. “Um ônibus com cem passageiros tem direito a cem vezes mais espaço de vias do que um carro com um”, diz Peñalosa em entrevista por telefone à Revista Exame.
Em Bogotá, entre 1998 e 2001, ele foi responsável por medidas que seguem esta visão: construiu mais de 300 km de ciclovias, restringiu tráfego de carros em horários específicos, proibiu o estacionamento em calçadas e o restringiu no centro da cidade, além de construir vias exclusivas para trajetos de ônibus. Para os pedestres, as calçadas foram alargadas e mais de mil parques foram construídos ou totalmente reformados.
No último ano do mandato de Peñalosa, a cidade de mais de 7,1 milhões de habitantes recebeu o prêmio Stockholm Challenge pelo seu sistema de transporte de massa baseado em ônibus, o TransMilenio, que foi inspirado nos BRT de Curitiba, no Brasil.
Antes do sistema, em 1998, uma viagem de 30km no transporte público levaria 2 horas e 15 minutos. Dez anos depois, o mesmo trajeto é feito em 55 minutos, segundo Angelica Castro, ex-gerente do TransMilenio, em entrevista em 2008 para Streetfilms (confira documentário sobre o sistema ao final da matéria). O sistema é intermodal, com ciclovias que levam até as estações e estacionamentos gratuitos para bicicletas. Alguns pequenos ônibus trafegam pelas ruas menores levando pessoas para as estações do TransMilenio, de graça.
Cerca de 1,4 milhão de pessoas usam o transporte por ônibus rápidos criado e implementado na administração de Peñalosa todos os dias em Bogotá. A principal diferença do sistema está, além do uso de faixas exclusivas para eles, nas estações. Elas se parecem com estações de metrô, onde o pagamento é feito previamente e as plataformas são niveladas com o chão do ônibus.
Bogotá ainda tem problemas com trânsito e congestionamento, mas se orgulha, além do TransMilenio, de ser uma cidade que promove o ciclismo. “Hoje, ainda que seja muito pouco, para cada três pessoas que andam de carro, uma anda de bicicleta”, diz o ex-prefeito. Por lá, porém, ele admite que ainda faltam muitas coisas a serem feitas.
Hoje consultor em urbanismo e transporte, Peñalosa viaja da Ásia à América Latina: “Faço assessoria em estratégias para fazer cidades mais sustentáveis”, explica. Em outubro, o ex-prefeito desembarca no Brasil.
EXAME.com – Quando o senhor foi prefeito de Bogotá, mudou radicalmente as políticas públicas da cidade. Qual foi o raciocínio para esta mudança de perspectiva?
Enrique Peñalosa – Nós tínhamos alguns princípios claros. O primeiro era que a questão da mobilidade não se pode resolver com base no automóvel particular. É bom dizer que um ônibus no meio do tráfego é tão antidemocrático quanto não permitir que as mulheres votem. Em todas as constituições está escrito que os cidadãos são iguais perante a lei. Então, se todos os cidadãos são iguais, um ônibus com cem passageiros tem direito a cem vezes mais espaço nas vias do que um carro com um.
Este é um conceito difícil de se vender para uma cidade que se baseia no transporte em carros. Como você convenceu a população de que isso era o melhor?
Bom, por isso te digo: com esses argumentos. É preciso, claro, que as faixas realmente funcionem. Precisa de coisas como estações para pagamento para que, quando chegue um ônibus, em segundos se possam descer cinquenta pessoas e subir outras cinquenta pessoas.
E isso acabaria com os engarrafamentos?
Não, ter mais vias não acaba com o trânsito porque o que gera o engarrafamento não é o número de carros, por mais estranho que isso pareça. O que causa trânsito é, primeiramente, o número de viagens que as pessoas fazem e quão longe elas vão. Para efeitos de tráfego, é o mesmo ter dez carros que percorrem um quilômetro cada do que ter um carro que percorre dez quilômetros. A questão da mobilidade se soluciona com os transportes públicos, mas não a do trânsito. Você pode ter uma linha de metrô embaixo de cada rua em São Paulo e ainda assim não vai melhorar o trânsito.
Então, como se reduz o número de viagens para melhorar o trânsito?
Somente restringindo o uso de carros. Aí há várias maneiras: pode haver pedágio urbano, cobranças em certas vias, pode ter uma gasolina mais cara, pode ter um rodízio como vocês têm. Mas a melhor maneira de reduzir o uso do carro é restringir o estacionamento.
Acabar com estacionamentos nas ruas?
Sim. Há muitos carros onde deveriam haver calçadas. Esta é a primeira coisa que destrói a qualidade humana da cidade. E aqui tem um ponto que é importante ter claro: o governo não tem nenhuma obrigação de resolver os problemas de estacionamento.
No Brasil e em outros países, investe-se muito em metrôs e trens para a questão da mobilidade urbana, mas eu ouço o senhor falar muito mais em ônibus. Metrô não é solução?
Os políticos adoram investir em trens e metrôs porque politicamente isso é fácil, muito fácil. Gasta muito dinheiro, mas não tem discussão com ninguém. Os cidadãos que têm carros querem que façam mais linhas não porque vão usá-las, mas porque acreditam que outros vão e isso vai diminuir o trânsito. Não há conflito com o espaço dos carros. Mas os trens e metrôs são excessivamente caros. Você pode fazer, com o mesmo custo que faz um quilômetro de metrô, trinta de faixas exclusivas para BRT. A solução não é um problema técnico, nem econômico, é um desafio político. E há mais vantagens. Veja bem, é muito mais agradável ir na superfície, com a luz natural, do que ir enterrado embaixo da terra, como um rato. Não me parece democrático enterrar os usuários de transporte público. É loucura. Que se enterrem as pistas de carros, é muito fácil fazer pistas subterrâneas para carros, mas os cidadãos que usam o transporte público são heróis. Quando bem instalados, os BRTs são mais rápidos, podem mudar de linhas sem isso de baldeação, têm estações mais próximas. Agora, é preciso mais de uma faixa em cada estação para a existência de ônibus expressos. Obviamente, é possível que também sejam necessárias linhas de metrô, mas antes de tudo temos de aproveitar democraticamente os espaço de vias que já temos.
Ainda assim, medidas como essas são garantia de uma briga com parcela grande da população.
Então, eu vi que quando houve os protestos no Brasil, a presidente saiu correndo dizendo que iam investir em mais linhas de trem. Mas esta é a reação emocional, não a mais técnica. É mais difícil politicamente, claro, tirar espaço dos carros para dar mais espaço a ônibus, bicicletas e pedestres. É mais difícil, mas é a única solução. O sistema com base em ônibus não é apenas o melhor, mas é o único possível. Não existem soluções mágicas. Quando você pensa em cidades com poucos carros e com muitas restrições aos carros parece um sonho louco. Mas essas cidades não só são possíveis, como existem e têm êxito. Como por exemplo Manhattan, em Nova York, Londres ou Paris.
Fotos: Pedro Felipe (Wikimedia Commons / Revista Exame)
Fonte: Revista Exame