ANTT mantém normas que contribuem para acidentes graves de ônibus

O Brasil aderiu ao projeto da Organização Mundial da Saúde de uma década de ações para reduzir acidentes e o Governo Federal lançou o “Pacto Nacional pela Redução dos Acidentes no Trânsito – Um Pacto pela Vida”, entretanto, a ANTT- Agência Nacional de Transportes Terrestres, está na contramão criando condições para mais acidentes nos próximos 15 anos.

Ocorre que o transporte rodoviário de passageiros, das linhas interestaduais, está em processo de licitação sob o comando da agência. Os editais publicados pela ANTT mantém normas que colocam em risco a vida dos passageiros, motoristas e demais usuários das rodovias. Simplesmente ignora as atuais políticas de prevenção de acidentes em vigor no mundo.

Pelo edital, que está em audiência pública, a ANTT estebelece que um motorista poderá dirigir até 4h30 sem parar, até chegar ao ponto de parada ou destino. Essa determinação obriga o motorista a dirigir, em alguns trechos, quase 320km sem parar. A parada é fundamental para reduzir acidentes por fadiga, conforme comprovam vários estudos e perícias de milhares de acidentes que ocorrem no Brasil todos os anos. A ANTT está ciente disso, já foi alertada mas parece indiferente a questão.

Os esquemas operacionais, que estabelecem hora de partida, paradas e chegada, é trabalho de técnicos e engenheiros. Entretanto, os mesmos esquemas não são analisados por médicos que poderiam atestar a capacidade do motorista de dirigir com segurança nessas condições, bem como as consequências paras os passageiros de trafegarem tantas horas dentro de um veículo.

“O SOS Estradas, baseado nos índices apurados no Estudo Morte no Trânsito – Tragédia Rodoviária” estima que ocorram no Brasil, nas rodovias federais, estaduais e municipais, cerca de 20.000 acidentes por ano, envolvendo pelo menos 700 mil pessoas, causando 2.600 mortes e deixando em torno de 15.000 feridos. Pelo menos 50% ocorrem em rodovias federais.

Para Rodolfo Rizzotto, Coordenador do SOS Estradas e editor do www.estradas.com.br , ao negligenciar o fator humano na licitação do transporte rodoviário de passageiros, a ANTT assume o risco de contribuir para milhares de mortes e dezenas de milhares de feridos nos próximos 15 anos.

“A licitação é uma grande oportunidade de colocarmos em prática normas que permitem reduzir os acidentes. Infelizmente, a ANTT sequer sabe quantos acidentes ocorrem por ano com os ônibus que ela mesma fiscaliza e não utiliza a lamentável experiência dos acidentes passados para evitar os futuros. Não convocar os médicos para analisar os esquemas operacionais é outra prova dessa negligência”.

O que dizem os médicos: O Prof. Dr Marco Túlio de Mello, do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP, coordenou estudo com 400 motoristas de ônibus de linhas interestaduais , em laboratório do sono, no qual foi verificado que 55% dos motoristas cochilavam eventualmente ao volante.

Ele entende que as paradas devem ser pelo menos a cada 3h00 de direção, para permitir ao motorista recuperar os reflexos. Mello considera muito importante médicos avaliarem os esquemas operacionais: “Não dá para pensar somente em aspectos mecânicos e ou de trabalho, sem levar em conta o biológico”.

Para Dirceu Rodrigues Alves, Diretor do Departamento de Medicina Ocupacional da ABRAMET- Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, o ideal é parar a cada 2h00 de direção e isto vale para qualquer motorista. Segundo o especialista, a partir de 4h00 de direção contínua o motorista tem lapsos de memória. “ A ciência médica mostra que com quatro horas de direção veicular, o motorista tem déficit da função cognitiva, isto é, ocorre redução da atenção, concentração, vigília e agilidade mental”.

Ele lembra ainda que os passageiros também precisam da parada. “Afinal, é obrigatório a utilização do cinto de segurança durante todo o percurso, ficando todos impossibilitados de levantar e caminhar dentro do veículo, melhorando seu processo circulatório.” Alves desconhece qualquer contato da ANTT com a ABRAMET para avaliação dos esquemas operacionais ou edital de licitação.

Além da Abramet, outra associação fundamental para orientar a ANTT é a Associação Brasileira de Ergonomia, a mesma ciência que orienta o tempo máximo que os funcionários da Agência podem ficar no computador digitando sem parar, numa atividade que, diferente do motorista, não representa risco de vida. Entretanto, segundo o presidente da entidade, Dr. José Orlando Gomes, eles nunca foram procurados. “Pelas condições das estradas brasileiras, as regras aqui tem que ser mais rígidas que na Europa e EUA”, esclarece Gomes.

Há quase 20 anos são realizadas campanhas na Europa, Oceania, América do Norte e Ásia, orientando os motoristas a não dirigirem mais de 2h00 sem parar e descansar 20 minutos. Alguns modelos de veículos tocam um alerta a cada 2h00 para informar ao motorista que é preciso parar.

O Departamento de Transportes do Reino Unido faz seguidas campanhas recomendando parar a cada 2h00 de direção descansar ao menos 20 min. Nos EUA a National Sleep Foundation (Fundação Nacional do Sono) criou uma ong denominada Drownsing Drivers (Motoristas Sonolentos) em função do grande número de acidentes que ocorrem por fadiga. Há 20 anos que nos EUA as campanhas falam em parar a cada 160 km ou 100 milhas.

Tanto na Europa como América do Norte já ficou comprovado que 20% dos acidentes ocorrem com motoristas cansados, causando 30% das mortes, porque nesse tipo de acidente o motorista não reage ou demora para fazê-lo e a colisão é mais violenta. No caso dos motoristas profissionais a média dos acidentes com motoristas cansados varia entre 40% e 50%. Número que corresponde a realidade brasileira, segundo estudo “Morte no Trânsito – Tragédia Rodoviária” realizado pelo SOS Estradas.

A ANTT parece se sentir confortável com a situação dos motoristas. Contatada pelo Estradas.com.br a ANTT informou que: “até o presente momento, não recebeu demandas por parte de motoristas”. Destacou ainda que as regras da jornada de trabalho são definidas pela Consolidação das Leis do Trabalho e em Convenções Coletivas de Trabalho entre os sindicatos dos motoristas e às empresas operadoras.

Paulo Amaro, Presidente da ABRAMOR- Associação Brasileira de Motoristas Rodoviários – esclareceu que a ANTT esquece as atribuições do motorista: “ Quando você chega na garagem faz uma vistoria completa do ônibus, que leva entre 40 min e 1 h00, depois perde 20 min para chegar na rodoviária, fica mais 20 min fazendo o embarque e depois ainda querem que o motorista fique dirigindo até 4h30. São praticamente 6 h00 de trabalho, dirigindo em rodovias perigosas com a responsabilidade de transportar dezenas de passageiros. O que contraria a própria CLT. Infelizmente, os motoristas tem medo de denunciar e reclamar, para não perder o emprego”.

Ministério Público promete acompanhar a questão: O Dr. Thiago Lacerda Nobre, Coordenador do Grupo de Transportes da 3ª Câmara de Coordenação e Revisão- Consumidor & Ordem Econômica – do Ministério Público Federal, afirmou que “A ANTT, como agência reguladora, tem que pensar no interesse do usuário. Portanto, na sua segurança, do motorista e demais usuários da via”.

Esclareceu que a CLT e outras normas não impactam na ANTT, pois o serviço é estabelecido mediante outorga e a Agência deve e pode estabelecer normas que garantam a segurança e que reflitam a evolução em todos os campos, inclusive da medicina, independente de relações de trabalho entre a empresa de transporte e seus funcionários.

Garantiu que o MPF vai dar atenção especial a questão da segurança nos editais da licitação do Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros, exigindo padrões internacionais de prevenção de acidentes.

Riscos para os passageiros: Marcus Musafir, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia, lembra dos riscos de queda que correm idosos tentando chegar ao toilete de um veículo em movimento, em que deveriam estar usando o cinto o tempo todo. Enfatiza a necessidade do motorista e todos os passageiros, em particular pessoas com mais idade, de fazerem caminhadas a cada 2h00 ou no máximo 3h00 para evitar a TVP (Trombose Venosa Profunda).

Para isso é necessário que as paradas sejam programadas. Opinião compartilhada pela Dra. Silvia Pereira, Presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. “O ideal para o idoso é parar a cada 2h00 de viagem”.

A situação dos cadeirantes é ainda mais delicada, pois, dependendo da lesão ou doença, necessitam fazer uso de toiletes especiais com regularidade, em circunstâncias delicadas e até dolorosas. Embora a ANTT demonstre no edital alguma preocupação com a acessibilidade para entrar nos veículos, esqueceu que os cadeirantes não podem usar sequer o toilete dos ônibus. Portanto, é injustificável obrigar essas pessoas a ficarem por vezes 4h30 dentro do veículo, como ocorre hoje em dia e a ANTT pode regulamentar pelos próximos 15 anos.

Ao contrário da ANTT, a Polícia Rodoviária Federal está preocupada com as condições de trabalho dos motoristas e tem realizado comandos de Saúde, buscando apoio nas entidades médicas. Recentemente, o DPRF em parceria com o Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pesquisou o uso de substâncias psicoativas para avaliar a situação preocupante em que o motorista profissional vive, colocando em risco vidas que trafegam pelas rodovias do país. A iniciativa ganhou inclusive prêmio na área de segurança no trânsito.

De acordo com a PRF Bianca Novaes, que faz parte da Divisão de Saúde e Assistência Social, “o condutor deve programar paradas a cada 3 horas. Quem se expõe a muitas horas dirigindo fica sujeito ao fenômeno da “hipnose rodoviária”, na qual se mantém de olhos abertos, mas sem percepção da realidade à sua volta. Ela vem acompanhada de sonolência, perda de reflexos e de força motora”, afirma.

Como agência reguladora, a ANTT pode estabelecer os critérios de segurança, para garantir conforto e minimizar os riscos de acidente nas viagens. “É importante lembrar que um motorista de ônibus não tem a liberdade de um caminhoneiro ou motorista de automóvel de fazer uma parada quando achar necessário. Ele não pode simplesmente parar na estrada e dizer para dezenas de pessoas: “Pessoal, vou tirar um cochilo!” Da mesma forma, é importante considerar que existem pessoas com diferentes faixas etárias e condições de saúde no veículo. Por isso é preciso que a ANTT leve em consideração isso e estabeleça critérios que médicos aprovem. Estamos falando de gente, vidas humanas.”, reforça Rizzotto do SOS Estradas.

Embora a agência alegue que o edital está em audiência pública e pode ser alterado com as sugestões dos usuários e interessados, o SOS Estradas enviou sugestões nas Audiências Públicas que precederam a divulgação dos editais e nada foi utilizado. Há anos que sugestões são enviadas, denúncias feitas, mas nada acontece. As audiências públicas parecem apenas jogo de cena.

ANTT não estabelece quais os critérios médicos e muda foco: Consultada pelo Estradas.com.br sobre quais os critérios médicos para autorizar viagens com até 4h30 de direção contínua, o equivalente a quase 320km em algumas rotas, a ANTT não respondeu mas fez questão de contestar a distância: “Esclarecemos que a afirmação de que 4h30 de viagem corresponde à 320 km de extensão percorrida, não é correta, pois mesmo considerando uma situação de viagem mais expressa, ou seja, que o ônibus trafegue em um trecho asfaltado e duplicado, sem pontos de seção e ou parada, a extensão máxima percorrida pelo ônibus seria de 302 km, pela média prevista no edital, o que equivale à distância entre Curitiba/PR e Florianópolis/SC.”

O Estradas.com.br foi verificar o esquema operacional da linha Curitiba-Florianópolis, mencionada pela ANTT. Apuramos que a empresa Auto Viação Catarinense anuncia em seu site fazer a viagem entre as duas cidades em 4h15 , partindo de Curitiba as 6h30 e chegando em Florianópolis as 10h45. A empresa informou que entra em Joinville e Balneário Camboriu para embarque e desembarque nas rodoviárias de ambas as cidades.

A distância percorrida é de aproximadamente 320km. Descontados pelos menos 15 minutos perdidos nas duas cidades, significa que a empresa está fazendo 320km em no máximo 4h00. Como os limites de velocidade do trecho variam entre 50km/h e 90km/h isto significa que a ANTT está permitindo que a empresa viaje em excesso de velocidade. Não é uma irregularidade praticada as escondidas, mas exposta publicamente no site, confirmada no guichê e garantida no 0800. Indício de que a agência está mais preocupada em reduzir paradas, que atende o interesse de algumas empresas, do que criar normas que contribuam para o aumento da segurança dos motoristas, passageiros e demais usuários da via.

Fonte: Estradas.com.br

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