Na semana passada discuti um pouco da lamentável situação do sistema de transporte rodoviário do nosso estado. Sinceramente, uma breve introdução contextualizada com críticas e ironias a um órgão gestor que deveria agir desde já para ajustar o transporte praticamente falido que temos, e não estarem consagrando a licitação rodoviária do estado como um remédio eficaz na cura dos males.
Mas eis que, ao visitar um blog que não via há tempos – o acessava muito quando vivia pelo Twitter – mesmo percebendo que o mesmo está bastante desatualizado, encontrei um texto com um relato do dono do blog sobre uma viagem de ônibus feita por ele no final do ano passado. O relato não é dos melhores e, curiosamente, o que pode – ou não – ter sido uma falha da empresa citada no texto, é uma experiência praticamente diária para os usuários do transporte rodoviário do Rio Grande do Norte.
O blog é ‘O Mundo segundo Tio Dino’, e o texto pode ser conferido na íntegra no link: http://playboy.abril.com.br/blogs/o-mundo-segundo-tio-dino/2012/01/10/eu-so-queria-ir-pra-cachoeiro/. Peço, atentamente, a leitura de vocês e a contextualização para as meras coincidências com o que temos aqui no estado. Asseguro, o texto é longo, mas vale a pena ser lido!
Eu só queria ir pra Cachoeiro
O azar segue um padrão: vem sem avisar. Só consegui escrever esse texto agora, porque nas duas tentativas anteriores eu não passava do segundo parágrafo sem chorar.
Eu tinha algumas alternativas para passar a virada de ano. A primeira: um retiro espiritual – meus pecados ainda estavam frescos na memória do capeta, o que poderia contribuir para um desequilíbrio na harmonia Cristã. A segunda: Búzios – não tenho cara de Búzios. Tenho uma alma de Piscinão de Ramos aromatizando com o Tietê. O mais perto de Búzios que já fui foi numa consulta a um pai de santo. Terceira: Europa – sem chances. Continuarei por algum tempo conhecendo a Europa só de Google. Ou, no máximo, me aproximando de um filtro d’água. E o último: Espírito Santo – um convite muito estranho. Deve ser por isso que eu resolvi aceitar: sempre gostei de um desafio.
O destino era Marataízes, litoral sul capixaba, com uma parada em Cachoeiro de Itapemirim – lugar onde Roberto Carlos deixara saudades e uma perna. O fim de ano faz com que as companhias aéreas se digladiem por passageiros nos presenteando com preços absurdamente baratos. Mas achei que Vitória era muito longe e resolvi sair do Rio direto para Cachoeiro. De ônibus. A passagem para o inferno com escala no limbo acabara de ser comprada.
Se o diabo precisasse de coletivo, com certeza usaria os serviços da Viação Itapemirim: carros sem ar-condicionado para uma viagem de mais de 6 horas.
Ainda na rodoviária Novo Rio, já tinha uma ideia do que me esperava. Deveríamos sair por volta das 23h08min e só partimos realmente às 23h30, sabe-se lá por que. Mal saímos do portão e os primeiros problemas surgiram. O pessoal pensou que estava indo para um churrasco e desandou a comprar cerveja dos ambulantes que aproveitavam o engarrafamento para faturar uns trocados. Eu, sentado ao lado do banheiro na última poltrona, via o entra e sai de pessoas apertadas e sentia o cheiro de mijo (SIC) irradiando uma felicidade desesperada.
Em Niterói o ônibus pifa.
– O que aconteceu motorista?
– Acho que o ônibus ficou com saudade de casa.
– Qual o problema?
– Arrebentou a correia do alternador.
– Não dá pra fazer nada?
– Dá. Esperar outro ônibus.
– Acho que o ônibus ficou com saudade de casa.
– Qual o problema?
– Arrebentou a correia do alternador.
– Não dá pra fazer nada?
– Dá. Esperar outro ônibus.
Depois de 1 hora e meia a espera de outro veículo que pudesse nos levar até o nosso destino, surge um ônibus saído diretamente do interior do Afeganistão ou de algum museu do início da era dos transportes coletivos. A grande diferença deste, além do cheiro de mofo, era o ar-condicionado, que impressionantemente funcionava (!).
E dá-lhe mais cerveja pra comemorar. Dava a impressão de que os passageiros nunca haviam viajado em um ônibus com banheiro e queriam aproveitar ao máximo a experiência abrindo de minuto em minuto esta parte desprivilegiada do veículo.
À uma hora de Mimoso do Sul o ônibus substituto quebra.
– É falta de ar.
– É a primeira vez que viajo num negócio que se parece com meu avô. Qualquer subida já cansa.
– Sem ar não tem freio. Não dá pra abrir o bagageiro. E a descarga não funciona.
– E qual é a notícia ruim?
– É a primeira vez que viajo num negócio que se parece com meu avô. Qualquer subida já cansa.
– Sem ar não tem freio. Não dá pra abrir o bagageiro. E a descarga não funciona.
– E qual é a notícia ruim?
Ficamos horas intermináveis a espera de alguma coisa que nos tirasse dali. E em nossos sonhos estavam motos, carroças, paus-de-arara ou bicicletas. Celular, rádio, walkie talkie, pombo correio, sinal de fumaça… nada funcionava. Estávamos presos a um Triângulo das Bermudas. Até o eco de nossos gritos era respondido com um “NÃO TEM NINGUÉMMMMM”.
Voltei para dentro do ônibus tentando me acalmar e abri um livro. Um moleque de uns treze anos abriu a porta do sanitário e falou alto para um senhor que se aproximava: “pai, a descarga não funciona?”, “Luiz, você fez cocô (SIC)?” (…). Saímos todos do coletivo infestado por uma fragrância de urubu em decomposição.
Sentíamo-nos andarilhos num deserto de asfalto, terra e poeira. Quando num misto de realidade e miragem, um ônibus da Itapemirim surgia no horizonte. Desceram dois mecânicos e um motorista. Uma habilidade tão grande para detectar o problema que só me leva a crer que aquilo seja mais frequente que as linhas que eles disponibilizam.
– A gente vai trocar de ônibus, moço?
– Nem adianta. Esse aqui não vai caber na rodoviária de Mimoso.
– Nem adianta. Esse aqui não vai caber na rodoviária de Mimoso.
Seguimos viagem ao som de resoluções de Ano Novo, que incluíam escolher melhor as empresas com qual viajávamos, promessas de banho de sal grosso, orações a São Cristóvão e outros ruídos indecifráveis. Em Cachoeiro, muito próximo da estação, um gordinho simpático foi até minha poltrona e perguntou.
– Moço, você sabe se tem alguém no banheiro?
– Não sei. Acho que não.
– Não sei. Acho que não.
E vomitou. Todo refrigerante e a coxinha que o faziam ter esse formato arredondado.
Quando vi uma garrafa de guaraná Dolly rolando até bater em meus pés, não me restava a menor dúvida: era a assinatura que faltava para este belo relato.
***
Pois bem. Semana passada trouxe a crítica, hoje quis trazer o que considero fato – ainda que camuflado. Esta é a exata situação do viajante no Rio Grande do Norte atualmente. Precisamos ou não de um ajuste imediato?
Thiago Martins
Essa foi boa!!!!
Muito interessante este relato desse cidadão, do jeito que ele sofre muita gente do nosso estado também sofre. Eu já fui uma dessas pessoas, passar 7hrs dentro de um ônibus para andar 280km não é fácil. Boa matéria.