Ônibus de primeira classe

Recostado no conforto da poltrona, o sociólogo Rudá Ricci gosta de ler até o sono vir. Quando as pálpebras começam a pesar, apaga a pequena luminária portátil e adormece. Os olhos fechados, ainda nas proximidades de Belo Horizonte, só se abrem em São Paulo, após atravessar a madrugada e os cerca de 600 quilômetros que separam as duas cidades. A cena se repete quase semanalmente, nas frequentes viagens a trabalho que Rudá faz à capital paulista e ao Rio de Janeiro, a bordo do ônibus tipo leito. “Trago minha matula: livro, luminária, caderno, um lanche… Mas, depois que durmo, não vejo nenhuma parada”, conta. O estresse com os voos e atrasos frequentes já o fizeram desistir do avião há muito tempo.
Não é novidade que o crescimento do poder econômico do brasileiro fez muitos passageiros habituais dos ônibus serem seduzidos pelas empresas de transporte aéreo. No entanto, o transporte rodoviário de passageiros também foi beneficiado pela ascensão da economia. “A classe C passou a viajar mais de avião, mas também entre as classes C e D aumentaram as viagens de ônibus”, afirma Paulo Anselmo, gerente de vendas da Gontijo.

Há quem não troque a pontualidade e o conforto do ônibus pelos risco de longas esperas nos aeroportos, muitas vezes distantes. Para manter esse público fiel e ainda expandi-lo, as empresas de transporte rodoviário têm investido em novos serviços e promoções – muitos deles inspirados em estratégias do setor de transporte aéreo. E o apelo tem funcionado: levantamento da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros mostra que a satisfação dos usuários de transporte rodoviário intermunicipal e interestadual cresceu de 4 para 4,5 entre 2000 e 2010, numa escala de 1 a 6.

Para o diretor executivo da Viação Cometa, Anuar Helayel, o setor aéreo não chega a ser considerado um concorrente, já que muitos de seus trajetos não são realizados pelas empresas de aviação. Segundo Anuar, a estratégia da empresa estaria baseada em dois fatores que se completam: “Os passageiros buscam não somente preços justos e boas condições de pagamento, mas também conforto durante a viagem”, destaca.

Os dois conceitos são aliados, em diferentes níveis, no novo veículo GTV, lançado no ano passado e que faz a linha São Paulo-Curitiba. Quem prioriza conforto pode escolher uma das nove poltronas dianteiras, do tipo leito, numa espécie de primeira classe, tradicional nos aviões. Quando a opção for por maior economia, 24 lugares do tipo executivo completam o veículo, que oferece ainda serviços de televisão, DVD e frigobar.

Para o professor de administração da UFMG e da Fumec Carlos Alberto Gonçalves, por mais que as empresas de ônibus reinventem seu marketing, sempre terão um fator externo que não podem controlar: as estradas, que no Brasil são um grande ponto desfavorável para o transporte rodoviário. “O principal atrativo ainda é o preço, que tem de ser no máximo metade do avião para conseguir competir”, avalia o professor. Além disso, ele aposta na necessidade um marketing misto, que alie conforto, preço, logística e ganho de tempo.

Um dos novos diferenciais que algumas empresas têm buscado oferecer são as salas VIP nas rodoviárias, espaço exclusivo onde o cliente pode esperar seu ônibus em assentos mais confortáveis e com ar-condicionado, televisão, revistas e água disponíveis. Belo Horizonte ganhou sua primeira sala VIP há poucos meses, da Viação Útil. Como a concorrência tem se acirrado principalmente nas linhas de longa distância, a Útil também já fez uma experiência com rodomoças (inspiradas nas aeromoças) e serviço de bordo em seu trajeto mais extenso, do Rio de Janeiro a Brasília. No entanto, retirou o serviço em menos de um ano, alegando pouco retorno dos passageiros. “A maioria não via grandes vantagens, já que dormia boa parte da viagem e preferia se alimentar nas paradas”, avalia o gerente de marketing da Útil, Luiz Carlos Jardim.

As promoções de passagens aéreas, cada vez mais atraentes, foram sem dúvida as principais responsáveis pela migração de alguns passageiros do transporte rodoviário para o aéreo. No entanto, Luiz Carlos Jardim ressalta a limitação dessas ações promocionais. “São poucos assentos disponibilizados, fora a necessidade de comprar com semanas de antecedência. De maneira geral, os ônibus ainda são bem mais baratos”, destaca. Além disso, as empresas também têm apostado em políticas semelhantes: “Nós estimulamos a compra antecipada por meio de promoções, pois isso nos ajuda em termos operacionais. Se um ônibus lota três dias antes, posso disponibilizar outro carro facilmente”, explica Jardim.

Com o acirramento do mercado, a informatização do sistema de vendas tornou-se inevitável. “Enxergamos que era preciso facilitar a compra de passagens de conexão ou retorno antecipadamente”, explica Paulo Anselmo, da Gontijo. A criação de programas de fidelidade, como o cartão de crédito próprio lançado pela Viação Cometa, também mostra que estratégias comuns no setor aéreo estão sendo incorporadas.

Mesmo com tantas ações e serviços inovadores, poucas vantagens se comparam à praticidade de se comprar a passagem em cima da hora. O empresário Giuliano Laucas, diretor da Cultura Inglesa, se beneficiou disso há menos de um mês, quando seu voo de volta a Belo Horizonte foi adiado indeterminadamente em São Paulo. O ônibus foi a única alternativa para não perder os compromissos do dia seguinte, e não decepcionou: “Foi uma ótima surpresa. Nem era um ônibus leito e a poltrona é infinitamente melhor que a do avião”, diz. Quando precisar novamente, ele já sabe o que fazer.

Fotos: Leo Araújo e Eugênio Gurgel (Revista Encontro)
Fonte: Revista Encontro

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