Test drive como passageiro pode não animar a maioria dos jornalistas automotivos. Menos quando essa carona oferecida diz respeito a algo muito especial. Nesse ponto, o convite para andar na primeira viagem de despedida do Flecha Azul da Cometa era imperdível. Quando eu morava em Belo Horizonte, cheguei a fazer algumas viagens para o Rio de Janeiro nesses ônibus, mesmo tendo a opção de viajar em outro mais moderno, provavelmente mais bem conservado, mas despossuído de personalidade. Pode parecer burrice. Afinal, por que não investir em uma viagem mais confortável ou com menores chances de quebras? Talvez porque na minha cabeça era como chegar em um balcão de aeroporto e me oferecerem a opção de viajar em um Lockheed Electra em lugar de um Boeing ou Airbus novos.
Essa escolha não era mais possível há quase dois anos, quando os ônibus da CMA deixaram de cumprir suas rotas. Nem por isso ele foi condenado ao ostracismo. O último exemplar produzido foi reformado pela Cometa e, em vez de ser guardado no museu logo de cara, cumpriu uma série de 65 viagens. O melhor: trechos de linha com passagens pagas. Após a última delas com passageiros de carreira, uma viagem Franca-São Paulo feita no dia 22 de outubro, ele pode garantir no epitáfio a frase: “Partiu fazendo o que mais gosta”. A derradeira viagem foi hoje em um trecho São Paulo-Campinas, incluindo retorno, com passageiros escolhidos em sorteio pela própria Cometa. Depois disso, o merecido descanso no museu.
Foi na primeira viagem dessa série que eu e o fotógrafo Rafael Munhoz embarcamos no dia 24 de agosto no Terminal Tietê, em São Paulo. A rodoviária é velho pano de fundo para esse ônibus. Ali na plataforma quatro, o 7455 resplandecia. Não é figura de linguagem para transformar aquele momento em algo lírico para você, leitor. O Flecha Azul brilhava e refletia tudo à sua volta na carroceria de duroalumínio rebitado ultrapolido.
Não era o único ponto em que ele entregava ser algo à parte. Se fosse um carro clássico, seria um restomod, restauração misturada com atualização. Basta bater o olho para notar os vidros selados e destino iluminado por leds. O esquema de iluminação é repetido na escada banhada no tom azul-boate. Para arrematar a certeza de que esse não é um Flecha Azul tradicional, um adesivo na carroceria indica que há… Wi-Fi!
Todas essas modernidades podem parecer heresias diante do desenho dos anos 1950. Mas não passa de impressão. O CMA Flecha Azul é retrô. O jeitão engana – o ônibus foi lançado há “apenas” 30 anos. Desde 1983 teve oito séries e 2.054 unidades produzidas. Ao olhá-lo por fora, poucos adivinhariam que esse é de 1998, e não de 1958.
A impressão se justifica pelo jogo de cena ultrapassado. Andar nele é como se você estivesse em um episódio de Mad Men, nos anos 1960, só que sem fumaça de cigarro ou chapéus. Até a pintura mudou para o padrão antigo. Além da combinação creme e azul, inspirada em um jogo de chá usado pelo antigo dono da Cometa, Tito Mascioli, as poltronas vermelhas são parecidas com as originais. Claro que, em uma viagem coalhada de busólogos, nada escaparia aos olhos desses apaixonados por ônibus. Logo alguém tascou: o revestimento não é mais de couro e sim de uma imitação ecológica. Pois é, os Flecha Azul tiravam onda nas plaquinhas no espaldar das cadeiras com a inscrição “couro legítimo”. Outro sinal dos tempos.
Na época, o requinte tinha alvo certo: competir com os voos daqueles Electras e outros aviões da Ponte Aérea Rio-São Paulo, criada em 1959 pela Varig, Vasp e Cruzeiro do Sul. Seus antepassados concorriam com aeronaves e outras viações, e essa rivalidade chegou aos anos 1980. É como fala uma moça em uma propaganda da Cometa de 1986: “É um verdadeiro avião”. Por isso mesmo, esses serviços chegaram a contar com rodomoças que usavam um look à comissária da Panair. Ele nasceu com a missão de cumprir longas pernas.
American Way of Life: Para enfrentar os rivais, o estilo não poderia ser acanhado. A estampa lembra os antigos ônibus norte-americanos da GMC usados pela Greyhound. Eles faziam sucesso na época em que a empresa surgiu como Auto-Viação São Paulo-Santos, até ser comprada por Mascioli, que mudou o nome para Cometa em 1948. Foi justamente quando a importação dos GMC não foi mais possível que a Cometa partiu para modelos nacionais da Ciferal (Comércio de Alumínio e Ferro). Mas se o negócio era se destacar perante as demais, por que não fazer um ônibus próprio? Foi assim que surgiu o Ciferal Dinossauro lançado no Salão de São Paulo de 1972. Era leve, graças à carroceria que misturava metade da tabela periódica, feita em duroalumínio, liga que une alumínio, cobre, magnésio, manganês e silício.
Claro que não era apenas uma questão de desempenho. Como eram mais leves, gastavam menos combustível e poupavam a mecânica, de motor e transmissão aos freios. A própria Cometa emprestou dois GMC para ajudar a Ciferal a se inspirar. Virou símbolo da companhia. Por isso mesmo, quando a Cometa decidiu fazer o seu ônibus, fabricado pela companhia própria CMA (Companhia Manufatura Auxiliar), o projeto manteve viva a linhagem dos Dinossauros, incluindo o chassi Scania – K113CL no caso do 7455.
Jornada: Antes de nos despedimos da plataforma foi feito o sorteio de uma miniatura do ônibus (será uma para cada viagem). O sortudo foi o Fábio Henrique, de 18 anos, que veio com o amigo Franciel Souza. “Viemos lá de BH só para andar nele”, afirma Fábio. Viajar muito para ver um modelo de ônibus ou fotografar raridades em uma rodoviária é algo comum para os busólogos. Em quatro anos de paixão, os rapazes já foram até Curitiba.
Logo após me aboletar na confortável poltrona, noto que a visão dos passageiros não é obstruída pelas colunas. Lembra daquele cheiro de ônibus antigo? O Flecha Azul não tem, porque o 7455 marcava só 500 km rodados. O ambiente é plácido, as janelas seladas mal deixavam ouvir o motor Scania DSC11 de 11 litros e 360 cv, que trabalha desestressado para levar 10.500 kg. Uma pluma perto das 16 toneladas de alguns ônibus atuais. Mesmo com o ressalto no teto, o corredor é baixo – com 1,84 metro, eu encostava a cabeça. Para embalar o sono, o rodar é macio e sem molejo.
A 120 km/h, o motor gira a tranquilas 2.500 rpm, mas pode ir além. “Com o diferencial mais longo, ele chega a 150 km/h”, garante Anderson Torquato. “Por isso mesmo eram muito usados depois de vendidos pela Cometa para fazer viagens para o Paraguai”, completa. Ex-motorista do modelo, o mineiro foi até São Paulo acompanhar a viagem. Embora não tenha ganhado a miniatura, tem seu próprio Flecha Azul em escala 1:1, um modelo leito usado na sua transportadora. Sim, os Dinossauros e seus descendentes ainda rodam por aí.
Nas duas paradas, mais tietagem. No acostamento, alguns já esperavam com câmeras em punho. Por isso, os intervalos levaram o dobro do precisto. O motorista Marcos Ernesto está preparado para o assédio. “Quando fomos chamados, já avisaram que seria assim”, diz. Ernesto e outro colega são os únicos autorizados a dirigir esse Flecha Azul. Os outros não podem nem manobrar. Pergunto a ele como é o “show de luzes”, aquela brincadeira que faziam iluminando as setas de um lado e de outro intermitentemente. Ele hesita e depois fala marotamente: “Basta jogar a alavanca de seta duas vezes para um lado e duas para o outro em seguida, segurando depois”. É só mais um detalhe que vai deixar saudade nesse ônibus.
Na rodoviária de Belo Horizonte, uma multidão esperava o Flecha Azul que, sem vergonha, exibiu o seu motor aos curiosos. Alguns deles até embarcaram para dar uma voltinha até a garagem da Cometa só para ter o gostinho. E, sinceramente, viajando no ônibus mais moderno que nos trouxe de volta, já bateu saudade daquele último dos Dinossauros.
Fotos: Rafael Munhoz (Auto Esporte)
Fonte: Revista Auto Esporte