Licitações de ônibus: lições de cidades que mudaram o transporte coletivo

O Brasil passa por um surto de anúncios de abertura de licitações para o transporte público, medidas muitas vezes determinadas pela Justiça para tentar resolver um problema de décadas – os contratos precários de concessão.
Zero Hora mergulhou em casos emblemáticos de processos licitatórios no país nas últimas semanas e constatou que, na história de cada concorrência pública, há exemplos de boas iniciativas para contornar problemas e também de pendengas que ameaçaram a definição dos processos de renovação das concessões.
O caminho das licitações do transporte coletivo tem sido árduo Brasil afora. As brigas judiciais são verdadeiras epopeias, e os detalhes técnicos das concorrências torram neurônios das equipes destacadas para elaborar os editais – inclusive em Porto Alegre.
A prefeitura da capital gaúcha está esgoelada pelos prazos dados pela Justiça para lançar a concorrência – primeiro, até 5 de março, e agora até o fim do mês. A medida foi um ultimato, depois de tantos anos – passando por diferentes administrações – sem resolver essa pendência.
Na próxima segunda-feira, uma audiência pública discutirá a licitação do transporte na Capital. O evento estava previsto para ocorrer na última quinta-feira, mas foi adiado após protestos de pessoas que foram impedidas de acompanhar os debates na Câmara de Vereadores, em razão da lotação do plenário. Desta vez, a audiência será no Ginásio Tesourinha.
Em capitais como Belo Horizonte e Curitiba, o planejamento foi mais eficaz, desenvolvido por cinco ou mais anos. Em Porto Alegre, o prefeito José Fortunati anunciou em 1º de fevereiro de 2012 a abertura da licitação para meados do ano seguinte. O tempo era curto, e o governo municipal não conseguiu resolver o nó da integração com modais como o metrô – outro projeto que se arrasta há anos sem sair do papel.
Agora, explodem as dúvidas de última hora. Como ficará a tarifa, vai subir por causa das novas necessidades tecnológicas dos ônibus ou pelas reivindicações dos rodoviários por melhores salários? Ar-condicionado encarece a passagem? Vale acabar com gratuidades? Antigas empresas podem processar o município por serem excluídas do processo licitatório? Como ficam os empregados dessas companhias?
A greve recente dos rodoviários que afetou a rotina da população da Capital, privada de ônibus durante 15 dias, virou pauta nas reuniões do Orçamento Participativo (OP) que discutem a futura licitação. Foi traumático, revela Roberto Jakubaszko, um dos conselheiros participantes de um recente encontro do OP. “A população acusou o golpe de ter de pagar R$ 4 (para vans escolares ou irregulares) na greve”, observou Jakubaszko.
O Distrito Federal talvez tenha sido o palco da maior batalha pelas linhas de ônibus, dominadas por três famílias desde a construção de Brasília, há mais de 50 anos. Uma cena ilustra o poder e o destemor desses grupos. Ao ter um de seus ônibus – com cerca de 15 anos de uso – flagrado lotado e em alta velocidade em uma via, o dono da empresa declarou: “Os passageiros têm pressa”.
Além da Capital Federal, a reportagem também conheceu os meandros das licitações de Belo Horizonte, Curitiba, Rio de Janeiro, Florianópolis e Maceió – esta, em andamento. Confira as sagas dessas cidades para tentar organizar o transporte público.
A vantagem do planejamento antecipado: O pior já passou em Belo Horizonte. Foi em 1997, quando a prefeitura abriu a primeira licitação de ônibus. Houve duros embates jurídicos, uma verdadeira guerra, mas a prefeitura conseguiu impor a concorrência, feita por lotes. Em 2008, foi preciso fazer uma nova licitação para atualizar o sistema, e a fonte na qual BH bebeu foi o funcionamento do transporte de Porto Alegre, por meio de consórcios.
A capital mineira foi dividida em quatro grandes redes, e a licitação permitiu a formação de consórcios, em um formato parecido com o de Porto Alegre – hoje, é a capital gaúcha que se inspira em Belo Horizonte. O trauma foi bem menor, apesar de recursos judiciais. Atualmente, o planejamento municipal de transporte é regrado por um documento produzido ao longo de três anos, entre 2007 e 2010.
O chamado Plano de Mobilidade de Belo Horizonte reúne orientações para o setor até 2020. Graças a esse planejamento, os contratos, com duração de 20 anos, já previam a aquisição de veículos BRT pelas empresas, que até a Copa deverão estar nas ruas.
Nova licitação e tarifa mais baixa: Às vezes se imagina que, ao final de uma licitação que prevê um transporte de melhor qualidade, o preço da tarifa subirá. Não foi o caso de Florianópolis. A capital catarinense reduziu a passagem de ônibus em 10 centavos depois de dois anos de congelamento.
Basicamente, o que permitiu o barateio foi o fim da superada planilha Geipot (usada em Porto Alegre), que define o valor da passagem com base nos custos das empresas, repassando-os à tarifa. Os catarinenses preferiram investir em uma cesta de itens, atualizada por índices inflacionários. O detalhe é que, se o gasto com o serviço aumentar, a primeira opção é cortar custos, e não repassá-los à tarifa.
Nos estudos para composição da concorrência, a prefeitura constatou que havia algumas linhas sobrepostas. O fim desses itinerários aliviou o preço da passagem. Houve a retirada do ar-condicionado para baratear o custo ainda mais, mas há previsão de que o equipamento volte aos ônibus na medida em que a frota for se renovando.
Irregularidades combatidas com tecnologia: Fraudes de documentos que comprovam benefícios como passagem mais barata ou até passe livre são comuns no país. Algumas cidades estão empregando tecnologia para combater esse problema.
É o caso de Florianópolis. Com a nova licitação, a previsão é de que câmeras com reconhecimento facial sejam instaladas nos ônibus para evitar a utilização inadequada dos benefícios. Outra mazela é a superlotação.
No Distrito Federal, câmeras medem a ocupação do veículo. Se a lotação repetidamente superar cinco passageiros por metro quadrado, terá chegado a hora de exigir aumento da frota.
Investimento nos ônibus do futuro: Curitiba inventou o que se conhece por BRT (bus rapid transit), e hoje pensa além daquilo com o que as demais capitais estão preocupadas. A preocupação da prefeitura é com a poluição. Por isso, 30 veículos híbridos já estão em operação.
O motor elétrico é acionado para tirar o veículo da inércia, momento em que o gasto de combustível é maior. Quando o coletivo para, as baterias são recarregadas. A medida reduz a emissão de gases poluentes e economiza o biodiesel, que é o combustível utilizado quando o ônibus está em movimento. O plano é que a frota de veículos híbridos aumente ano a ano.
O nó das indenizações a trabalhadores: O que fazer com a massa de trabalhadores de empresas que perderam a licitação do transporte público? Essa é a pedra que restou no sapato do governo do Distrito Federal depois da concorrência dos ônibus. Cerca de 9 mil dos 11 mil rodoviários ficaram sem emprego nas companhias de ônibus excluídas – elas alegam não ter dinheiro para pagar as indenizações –, mesmo com um ponto do edital dizendo que as novas empresas deveriam dar preferência para a contratação dos desempregados.
Foi criado projeto de lei para que o tesouro assumisse um pedaço da dívida, solução considerada inconstitucional. O jeito foi tentar acordo com as novas e antigas empresas e com o sindicato dos trabalhadores. Basicamente, o sindicato fazia uma lista dos desempregados, e as novas empresas tinham que buscar ali as contratações, com um número determinado de vagas para trabalhadores de fora do sistema. O problema com as indenizações trabalhistas, porém, continuou. Duas empresas antigas sofreram intervenções por fraude nos processos.
Vitórias em batalhas judiciais: Ao entrar com a polícia na garagem de uma das empresas de ônibus que mantinham há décadas o serviço no Distrito Federal e haviam perdido a licitação, a equipe da prefeitura que deveria fazer a assunção – tomada dos bens – encontrou gente armada. Foi nesse estilo cangaceiro que as antigas detentoras do sistema de transporte local foram substituídas por outras empresas – 60% delas de fora do Distrito Federal.
Até o final de 2013, foram mais de 200 ações na Justiça contra o certame, promovidas pelas empresas e por laranjas, relata o secretário de Transportes do Distrito Federal, José Walter Vazquez Filho. Todas foram vencidas pelo governo. As empresas queriam indenizações milionárias pelos seus investimentos.
“Hoje, a cara da cidade está diferente. Antes, tinha ônibus de até 20 anos, e 87% da frota superava oito anos. O serviço ainda não está bom, mas queremos trocar o círculo vicioso pelo círculo virtuoso”, afirma José Walter, gaúcho de Santana do Livramento.

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