No princípio eram os 20 centavos. Em poucos dias, chegaram a “educação e saúde padrão Fifa”, o “contra a militarização das polícias”, o “sem violência”, o “sem partido” e uma infinidade de motes que arrastaram cerca de dois milhões de pessoas às ruas do país. As manifestações de junho de 2013, que tiveram início em Natal, deixaram no Brasil um clima de insatisfação que não se reverteu mesmo um ano depois e que, por enquanto, tem apontado para uma alta abstenção nas eleições. Além disso, deram força para que movimentos tradicionais, como os de sem teto e as greves por melhores salários, ganhassem força para impor sua agenda e pressionar governos e patrões às vésperas da Copa.
Os efeitos das manifestações de junho na política ainda são visíveis. Que o diga a presidente Dilma Rousseff. Em março de 2013, três meses antes de o movimento tomar as ruas do país, sua popularidade batia recorde, com 65% dos entrevistados pelo Datafolha avaliando o governo como ótimo ou bom. Ao final de junho, o recorde virou negativo: apenas 30% de aprovação. A presidente até ensaiou uma recuperação parcial e chegou a ter 41% de aprovação em fevereiro. Mas voltou a cair e chegou, neste mês, ao patamar de 33% eleitores avaliando seu governo como ótimo ou bom. O efeito das manifestações sobre as eleições é incerto. Na época, governadores também sofreram queda nos índices.
“Há um clima de insatisfação, mas não há nomes dentro da oposição, nem forças políticas, que consigam capitanear isso”, avalia o cientista político Marco Aurélio Nogueira, da Unesp, autor de “As ruas e a democracia”, sobre a onda de protestos, que complementa: “Se as manifestações prosseguirem ajudando a criar um clima de insatisfação no país, as eleições serão vencidas por quem conseguir estabelecer uma comunicação positiva”.
A análise se confirma com o estancamento e mesmo queda das candidaturas dos opositores do governo segundo o último Datafolha. O que cresceu na pesquisa foi a insatisfação. O número de indecisos e pessoas que tendem a votar em branco ou nulo subiu de 24 para 30% dos eleitores.
“Deve haver uma abstenção forte, o que mostra um desencantamento dos brasileiros em relação à política. O processo vai caminhar bem, vai ter eleição, mas há 30% de insatisfeitos”, aponta o sociólogo Marcelo Ridenti, da Unicamp.
Ridenti concorda com Nogueira que nenhuma liderança do país conseguiu representar o desejo de mudança dos eleitores. “As manifestações de junho e as manifestações de hoje são diferentes, mas as duas são expressão de um certo desejo de mudança. E nenhum candidato está conseguindo canalizar esse desejo”, diz Ridenti.
Integrante do Movimento Passe Livre (MPL), que protagonizou os protestos em junho, Lucas Oliveira sabe de cor a escalada das manifestações. O primeiro em 6 de junho; outro maior, com 5 mil pessoas, no dia 7. A crescente segue pelos dias 11 e 13, quando houve uma severa repressão policial. A resposta da sociedade veio no dia 17 de junho, com uma grande adesão ao movimento que pedia a suspensão do aumento de 20 centavos no preço das passagens de ônibus não só de São Paulo, mas de outras cidades, como Rio, Belo Horizonte, Recife. As manifestações prosseguem no dia 18, com mais força policial e cenas de violência. No dia 19, com o anúncio da revogação do aumento em São Paulo, os manifestantes capitaneados pelo MPL lotaram a avenida Paulista para celebrar a vitória.
Mas, àquela altura, o protesto não era mais deles. Diversos grupos foram às ruas e acabaram expulsando os partidos da passeata assim como o próprio MPL, que deixou as manifestações naquele dia para cumprir outras agendas na periferia da cidade, como os protestos de sem teto.
“A gente parou porque o nosso chamado era contra o aumento das passagens. A gente venceu”, diz Lucas, afirmando que, desde junho, o MPL cresceu e está articulado com seus pares nos estados: “Antes, a gente estava em 5, 6 cidades. Hoje, tem coletivos do movimento em 18 cidades em São Paulo”.
Para Marco Aurélio Nogueira, os protestos de junho foram importantes para que o Brasil incorporasse as manifestações ao seu cotidiano, mas produziram pouco resultado político. Não emergiu dos protestos nenhuma nova liderança e faltou uma articulação capaz de transformar essa mobilização em uma força política, analisa Nogueira.
“Os protestos foram uma hidra, com muitos tentáculos, muitas cabeças, muitas agendas e nenhuma articulação. A classe média participou de forma espasmódica, como uma corrente elétrica, e não se pode dizer que haverá outro espasmo como aquele”, diz o especialista da Unesp.
Na opinião de Ridenti, em junho passado “a panela de pressão apitou”: “Foi uma explosão de insatisfações. Qualquer explosão desse tipo dificilmente se mantém por muito tempo. Até se manteve bastante, por quase um mês. Esses movimentos foram importantes para mostrar uma certa crise de representatividade do Brasil, tanto dos poderes como dos canais tradicionais, como partidos e sindicatos”, diz Ridenti, para quem o poder público não tomou medidas para dialogar com esses movimentos nem para mudar suas práticas, ensaiando uma proposta de reforma política que não foi levada a cabo: “Os poderes constituídos fizeram muito pouco e continuam blindados dessa pressão da sociedade”.
Em meio a protestos violentos, a assiduidade dos brasileiros foi diminuindo nas ruas. Se no começo de junho o protagonismo dos atos era do MPL, aos poucos foi ganhando espaço a tática internacional Black Bloc, que cultua a estética da violência e o ataque a símbolos do governo, como prédios públicos, e capitalistas, como agências bancárias e de automóveis importados. Do outro lado, a repressão policial, que no início de junho gerou uma forte reação da sociedade, ficou ainda maior. Um balanço lançado na semana passada pelo Artigo 19, organização de defesa da liberdade de expressão, apontou que, em 2013, houve 696 protestos em todo o país, com 2.608 pessoas detidas, oito casos de morte relacionados às manifestações e 117 jornalistas feridos, além de inúmeros casos de agressão policial.
“Ainda é muito cedo para avaliar o impacto desses protestos. Eles ainda não acabaram. No curto prazo, o que tivemos foi uma retranca por parte dos governos, que lidaram mal com as manifestações. Há um retrocesso na democracia por parte dos governos, que se prepararam, mas de modo errado, com uma visão de ditadura, de repressão, uma visão militarizada. Já aquelas manifestações acabaram se dissolvendo em pequenas manifestações. Você tinha, antes, um envolvimento maior da classe média. A violência em geral tirou gente dos protestos e ela veio de vários focos”, avalia a diretora do Artigo 19, a advogada Paula Martins.
Hoje, a classe média saiu das ruas e ganharam força movimentos como o MTST, dos sem teto, e as mobilizações de classe. Quanto a isso, os protestos de junho deram força à revolta das bases contra os próprios sindicatos. No mês passado, a base rebelde dos rodoviários descumpriu o acordo firmado pelo sindicato e rejeitou o reajuste de 10% para a categoria. A revolta atingiu outras categorias, como os funcionários de limpeza urbana do Rio.
“Junho deu força, com certeza, a esses movimentos. Há uma pressão da base para seus dirigentes terem uma atitude mais combativa. Há uma inédita e surpreendente reação da base como no caso dos rodoviários”, diz Ridenti.
Fonte: Jornal Extra (RJ)