ANTT: Transporte interestadual indefinido

O juiz-forano acostumado a fazer viagens interestaduais, que concentrava a esperança de melhoria na prestação do serviço na licitação de 95% das linhas – anunciada e preparada há seis anos – precisará rever suas expectativas. A Lei 12.996, sancionada no mês passado, engavetou o projeto de leilão de mais de duas mil linhas no país e formalizou a substituição do modelo de permissão pela autorização, válido para os transportes interestadual de longa distância (acima de 75 quilômetros) e internacional. A expectativa é que a definição do regime jurídico, considerado mais flexível, estimule a concorrência, melhore a qualidade do serviço e promova a modicidade tarifária. O grande problema é que o modelo, por enquanto, tem uma forma ainda sem conteúdo.
Na região de Juiz de Fora, a mudança atinge diretamente 630 mil usuários do sistema por ano, que, desde a semana passada, pagam 4,7% a mais no valor das passagens. O número coloca a cidade em quarto lugar na lista dos municípios líderes em ligações no Sudeste, só perdendo para as capitais São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. A conexão Juiz de Fora – Rio de Janeiro, por ônibus, é a terceira mais procurada, com fluxo estimado de 471 mil passageiros/ano. No total, 16 empresas oferecem aproximadamente cem destinos fora do estado aos juiz-foranos. Os dados são da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Com filho morando no Rio de Janeiro, a professora Marina Brick Ribeiro, 58 anos, intensificou as viagens entre os dois estados. Na sua opinião, uma necessidade hoje é renovar a frota, garantindo mais segurança e conforto aos passageiros nos deslocamentos. O estudante Guilherme Cerqueda, 22, faz o caminho inverso. Ele mora no Rio de Janeiro, mas costuma vir a cidade pelo menos uma vez ao mês. Ele espera que a mudança no sistema estimule a concorrência. O estudante acredita que a tarifa pode ser impactada caso mais empresas ingressem no sistema e ofereçam o serviço. Hoje, em poucos destinos o juiz-forano tem opção de escolha. Entre eles, Rio de Janeiro (duas viações do mesmo grupo econômico), Brasília e cidades do interior de São Paulo e Paraná.
Desrespeito: Mariana de Oliveira Melo, 33, mora em Vitória da Conquista (BA) e veio com a família a Juiz de Fora visitar parentes. No percurso rodoviário de quase mil quilômetros que separa as cidades, ela teve poucos problemas na ida: apenas atraso na partida. Já a volta foi, no mínimo, conturbada. Logo ao entrar no ônibus, descobriu que os assentos adquiridos com antecedência estavam ocupados por passageiros que vinham do Rio de Janeiro. “Conversamos e, após um tempo, resolveram nos ‘permitir’ sentar nos nossos lugares de direito.” O que mais a incomodou, no entanto, foi a permissão para o uso de bebida alcoólica durante a viagem. “Alguns passageiros bêbados nos constrangiam, deixando-nos com medo. Gritavam e usavam vocabulários chulos. Foram momentos tensos pois havia crianças no ônibus.” Para ela, o mais revoltante foi que o motorista não tomou nenhuma providência. Como se não bastasse, a família ainda enfrentou longas paradas por problemas mecânicos até a chegada. “Então pude respirar e tranquilizar os meninos que estavam amedrontados com o que vivenciaram.”
Para que aconteça na prática, a implantação da autorização depende de regulamentação pela ANTT, com a definição de condições e forma de outorga. Conforme a lei, em função das características de cada mercado, o órgão regulador pode estabelecer regras específicas para a prestação do serviço, assim como realizar processo seletivo público para escolha das empresas, sempre observando os princípios de “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Por um período de até cinco anos, a ANTT poderá, ainda, fixar tarifas máximas, assim como critérios para o reajuste. Procurada, a agência reguladora não se posicionou sobre o assunto.
Licenças especiais devem acabar em 1 ano: Enquanto espera-se pelas definições, empresas que exploram o serviço atuam por meio de licenças especiais há seis anos, já que a grande maioria das permissões venceu em 2008. No artigo 5º da Lei 12.996 é estipulado prazo de um ano para que estas autorizações de caráter provisório sejam extintas. Há, porém, brecha legal para a prorrogação, sem tempo estipulado, a critério do Ministério dos Transportes (MT) e mediante proposta da ANTT. De olho no prazo, que vence em 18 de junho de 2015, a pasta, por meio de sua assessoria, afirma que equipes dos dois órgãos “estão empenhadas em viabilizar o cumprimento do prazo inicial, de forma a assegurar a efetividade de todas as inovações trazidas pela lei”.
O Ministério dos Transportes esclarece, ainda, que a mudança de permissão para autorização foi introduzida via emenda no Congresso Nacional, não traduzindo uma decisão da pasta em relação ao melhor modelo para o setor. A avaliação é que as autorizações têm como característica básica maior flexibilidade, permitindo ampliação da concorrência, com o ingresso de novos prestadores de serviço. “Como resultado deste processo é esperada melhoria na qualidade do serviço e modicidade tarifária.”
Sobre a manutenção da permissão para exploração do transporte interestadual semiurbano (com trajeto inferior até 75 quilômetros), também prevista na lei, o MT destaca que o modal possui características distintas do interestadual de longa distância e do internacional, assemelhando-se ao transporte urbano (frequência, tipo de material rodante e grau de essencialidade). “Neste sentido, há definição constitucional de que este tipo de serviço deve ser precedido de licitação.”
Usuários esperam ganho na qualidade do serviço: Com a mudança, a Confederação Nacional dos Usuários de Transportes (Conut) espera que o passageiro, “que é quem ‘banca’ as empresas exploradoras desse serviço”, seja respeitado e conte com serviço de qualidade. Para a entidade, antes de avaliar possíveis perdas e ganhos da modalidade, é preciso conhecer o modelo a ser implantado, carente de definição pela ANTT. A Conut avalia que a “intenção aparente” é de melhoria, com ato de exploração de transporte mais fácil de se consolidar. “Por outro lado, não se sabe quais serão os resultados dessa nova face do transporte que envolve tanto o empresariado, quanto o Governo e, principalmente, a população, que é a principal interessada.”
Para a Confederação dos Usuários, o transporte interestadual tem problemas e qualidades. Em pesquisa realizada pela entidade junto a 800 usuários, 11% disseram estar satisfeitos. A maioria (87%) relatou problemas de atendimento nos guichês e nas centrais de atendimento. “A avaliação é de um transporte que funciona, com suas dificuldades e limitações.”
A professora Fernanda Sanglard, 29, faz o trajeto Juiz de Fora – Rio toda semana há mais de um ano. “As empresas fazem o que querem”, diz, referindo-se, principalmente, a alteração nos horários. A mudança no quadro de partidas, aliás, é o que mais a incomoda hoje. Ao longo da jornada na estrada, Fernanda já enfrentou outros problemas, como passagem em duplicidade, mas afirma que conseguiu ser ressarcida após contato com a central de atendimento da viação. Na sua opinião, a falta de licitação torna os consumidores reféns das empresas, e essa situação precisa mudar.
O presidente da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), Paulo Porto Lima, avalia que a substituição do modelo de permissão pela autorização visa a garantir ao setor tratamento similar ao modal aéreo. “Ainda não é possível fazer afirmações conclusivas sobre a mudança do regime jurídico, porque toda a regulamentação ainda deverá ser elaborada pela ANTT. Somente depois de conhecê-la será possível formar juízo de valor sobre o assunto.” Para Paulo, neste primeiro momento, o setor passa a conhecer o regime jurídico válido. “Desde 1988 estávamos sem definição clara, especialmente sobre prazo, prorrogação e segurança jurídica no todo.” Quando o regulamento do novo regime for conhecido e houver regras mais claras, explica, será possível realizar investimentos necessários a manutenção e melhorias dos serviços.
Sobre condições e forma esperadas para outorga, a Abrati imagina que se assemelhe ao que vigorou durante 50 anos, antes da Constituição, quando o sistema foi regido no regime de autorização “enquanto bem servir”. Na prática, significava que a empresa prestava serviços enquanto cumprisse as exigências regulamentares. Caso contrário, era excluída do sistema, perdendo a autorização.
Com informações: Tribuna de Minas

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