Depois de vários alertas públicos sobre a perda de produtividade e de demanda do setor de transporte público por ônibus, a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) contratou pesquisa para avaliar a situação econômico-financeira das empresas. O resultado revelou um cenário preocupante, divulgado durante o seminário Transporte público urbano: desafios e oportunidades, realizado no dia 1º de junho, em Brasília, pelo jornal Valor Econômico em parceria com a NTU.
De acordo com o levantamento, realizado pelo Instituto FSB Pesquisa, mais de um terço das empresas entrevistadas estão endividadas. “A pesquisa confirma o que o setor vem dizendo há mais de 20 anos sobre a necessidade de políticas públicas que deem prioridade ao transporte coletivo, em detrimento do individual”, esclareceu o presidente da NTU, Otávio Cunha, logos após a apresentação da pesquisa.
Na abertura do evento, o secretário nacional de mobilidade urbana do Ministério das Cidades, José Roberto Generoso, afirmou que está sobrando dinheiro de financiamento de sistemas de mobilidade urbana. “Temos recursos para fazer de cinco a seis vezes mais do que estamos fazendo. O grande gargalo é a qualidade dos projetos. Grande parte é sofrível, falta integração entre município e estado e vice-versa”, alertou e anunciou que para o período de 2017 a 2020, a previsão é de redução do montante de recursos para a mobilidade urbana, por falta de uso.
No painel seguinte, as causas da crítica situação econômico-financeira das empresas foi detalhada por Otávio Cunha. Ele fez um breve histórico do desempenho do setor e explicou como a tarifa se tornou um elemento complicador do equilíbrio econômico-financeiro, ao mostrar que todos os custos do serviço são pagos pelo valor das passagens. “O resultado dessa pesquisa mostra que chegamos ao esgotamento do modelo atual de financiamento do setor e precisamos de um novo para atender a demanda social por um transporte público de qualidade”, justificou.
O planejamento do transporte urbano no país, comprometido desde a extinção da Empresa Brasileira de Transporte Urbano (EBTU), em 1991, foi o ponto de partida da linha do tempo traçada pelo presidente da NTU para chegar ao atual momento de crise. A partir daí o histórico inclui perdas e retrocesso do sistema. “Só conseguimos recuperar uma queda de demanda a cada quatro anos, no momento das revisões tarifárias”, esclareceu o presidente. E as revisões, segundo explicou, nem sempre são respeitadas, segundo determinam os contratos de concessão.
Outro dado importante na linha do tempo é a alta de 194,3% maior no preço do óleo diesel, se comparado com a variação do preço da gasolina, e 207,1% maior que o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor-Amplo). “Aqui fica evidente a ausência de uma política pública efetiva de priorização do transporte coletivo”, esclareceu o presidente. A queda de 40% na velocidade comercial dos ônibus, entre 1999 e 2015, assim como a infraestrutura inadequada reforçam o alerta da NTU sobre a falta de prioridade ao ônibus nas vias.
Para o empresário Edmundo de Carvalho Pinheiro (empresa Itapar), a pesquisa divulgada pela NTU reflete as dificuldades que o setor vem enfrentando diante da crise econômica, com perda de demanda, de produtividade e de capacidade de investimento, realidade pouco conhecida da opinião pública e até do poder público. “A verdade é que o transporte público urbano veio perdendo a importância nos últimos anos”, lamentou o empresário, referindo-se à falta de prioridade também na agenda de governo.
Insegurança jurídica
O contexto das manifestações de rua pela redução de tarifas de ônibus urbano, em 2013, foi citado durante o seminário e deu margem a outro assunto delicado para o setor: a judicialização dos reajustes tarifários, em função da pressão popular, que motivou decisões políticas de não cumprir os reajustes tarifários previstos em contratos de concessão das empresas com o poder público (estados e municípios), gerando a ruptura do equilíbrio econômico-financeiro do setor, segundo detalhou Otávio Cunha.
Na opinião do professor do departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP), Rodrigo de Losso, os contratos do transporte público urbano têm que ter metodologia que permita o reequilíbrio da tarifa ao longo do tempo. O assunto foi a “deixa” para o painel seguinte, sobre contratos de concessão pública e segurança jurídica.
Para o advogado Vitor Rhein Schirato, a segurança jurídica de um contrato de concessão pública deve obedecer a premissas básicas: necessidade de regras claras; não colocar em disputa contratos que sejam claramente impossíveis de se cumprir; apego religioso ao cumprimento do que foi pactuado. “Os ajustes nesses contratos devem ser feitos de acordo com as regras estabelecidas”, frisou o advogado, que fez uma série de considerações acerca do despreparo da administração pública para elaborar os contratos, incluindo a falta de vontade em melhorar a capacitação técnica dos servidores. O advogado também frisou a importância de um serviço socialmente sensível como o transporte, ter regras claras.
O advogado Maurício Portugal Ribeiro também opinou sobre o assunto e considerou que a solução para harmonizar a questão carece de contratos de concessão mais rígidos, estruturados e com taxa de retorno referencial. Já a Procuradora do Estado de São Paulo e vice-presidente do Ibeji (Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura), Inês Coimbra Almeida Prado, afirmou que a segurança jurídica “encarece muito os contratos para o poder público”. Também criticou a forma como os contratos de concessão normalmente são elaborados. “Eles não costumam ser bem modelados e os setores, de forma geral, não demonstram muito interesse na alteração desses modelos”, avaliou.
Como reverter a crise
As soluções que o setor defende para reverter o cenário de crise foram expostas no último painel do seminário, que tratou das tarifas, financiamento e sustentabilidade do setor. Coube ao diretor administrativo e institucional da NTU, Marcos Bicalho, apresentar sugestões para equacionar os desafios enfrentados. “Tarifa pública não pode ser limitador da qualidade do serviço”, frisou ao expor o grande nó do setor, que é a tarifa pública, que cobre 100% dos custos operacionais e mais as gratuidades e outros benefícios tarifários.
Entre as fontes externas de recursos para o setor, o diretor da NTU apresentou alternativas, com base em estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa econômica Aplicada), que propõe aliviar o peso da tarifa para o usuário ao abrir novas possiblidades de receitas para bancar os serviços de forma perene, envolvendo a sociedade em geral, usuários do transporte individual e o poder público: taxar combustíveis utilizados no transporte individual; o uso das vias; os estacionamentos públicos e privados; os proprietários de imóveis beneficiados pelos investimentos em transporte; tributos sobre a folha de pagamento das empresas e aproveitar as receitas agregadas de comércio, serviços e publicidades explorados nos sistemas de transporte.
Com relação à taxação dos combustíveis utilizados no transporte individual, a Cide Municipal, proposta defendida pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP), com apoio do setor, Marcos Bicalho detalhou a proposta e esclareceu que está em tramitação no Congresso Nacional. Segundo ele, o projeto poderia gerar uma arrecadação total anual de R$ 11,9 bilhões, com potencial para subvencionar quase 30% dos custos do transporte público e reduzir a tarifa.
Durante o seminário também foram apresentadas soluções para a cobertura de benefícios tarifários, na forma de gratuidades a idosos, estudantes e outros públicos. De acordo com Marcos Bicalho, os recursos para cobrir as gratuidades podem ser oriundos dos orçamentos públicos ou de fundos específicos voltados ao idoso e ao estudante. “Não podemos continuar com essa injustiça social, em que o menos favorecido é quem paga as gratuidades no transporte público”, frisou o diretor da NTU.
Sugestões para antigos desafios
Os problemas do setor não são novos. A perda de demanda – que caiu 24,4% entre 1994 e 2012 – e de produtividade – com queda da velocidade média dos ônibus, de 25km/h em 1999 para 15km/h em 2015 – são alguns deles, ocasionados por dificuldades como ausência de políticas públicas de investimentos na infraestrutura e excesso de incentivo ao transporte individual.
Além disso, com a crise política e econômica que atingiu o Brasil, o setor enfrenta grave crise. Somente de 2013 a 2016, a queda na demanda foi de 18,1%. Além disso, segundo a pesquisa, 28,4% das empresas estão em algum programa de recuperação fiscal federal. Desse total, quase metade (45,3%) se inscreveu no programa a partir de 2014.
O diretor da NTU ainda alertou sobre a relevância do transporte público urbano no contexto atual, especialmente após o reconhecimento do serviço como um direito social, segundo Emenda Constitucional n° 90, de 2015. De acordo com ele, esse requisito cria as condições para dar ao setor um tratamento tributário diferenciado.
Com relação à metodologia de cálculo de custos do setor, Bicalho anunciou que há uma nova planilha sendo elaborada pela ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos). Um dos objetivos do trabalho é dar maior transparência para a sociedade sobre a remuneração do operador, a partir de uma avaliação dos riscos envolvidos na atividade.
Como solução à falta de prioridade ao ônibus na via e a queda de velocidade, o diretor da NTU também listou as vantagens do Programa Emergencial de Qualificação dos Serviços Convencionais, elaborado pela NTU. Entre outras iniciativas, o programa sugere a implantação da faixa exclusiva de ônibus, com fiscalização eletrônica, sinalização horizontal e vertical e abrigo com informações ao usuário. Quanto à situação dos projetos de priorização do ônibus, Marcos Bicalho informou que grande parte ainda não saiu do papel. “Ainda temos um grande caminho a percorrer”, pontuou.
Ao participar das discussões do último painel, o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), defende que o gestor público esteja comprometido com melhorias no serviço de transporte público. “Defendo a inovação, rotinas que simplifiquem a vida do cidadão e a busca por variadas fontes de recursos, com elaboração de projetos com excelência. Só assim vamos garantir um sistema de transporte competitivo, com preços menores para a população de baixa renda”, esclareceu. Segundo o parlamentar, o evento trouxe à discussão questões importantes para o transporte público no Brasil, como as fontes de financiamento desse serviço.
Também convidado para o debate, o vice-presidente da Caixa Econômica Federal, Roberto Derziê de Sant´Anna, reforçou a disponibilidade de crédito para o programa de Renovação de Frota (Refrota 2017) que conta com R$ 3 bilhões. Ao participar das discussões, Derziê tambêm elogiou os esforços da NTU em colaborar na criação de um modelo de financiamento compatível com as peculiaridades das empresas de ônibus.
Fonte: NTU