Com medo de assédio, usuárias buscam serviços de transporte feitos por mulheres

Ainda eram 20h quando uma jovem de 24 anos, que prefere não se identificar, embarcou num táxi na Barra da Tijuca. Era cedo, a rua não estava deserta. Ao entrar no carro, não havia motivos para ela se sentir insegura, mas o fim da viagem seria traumático. Após uma parada em um caixa eletrônico para sacar dinheiro, ela seguiu viagem para Botafogo, mas teve o sossego interrompido quando chegou à Lagoa.
Foto: Fernando Lemos

— O taxista parou o carro. Eu estava de vestido. Ele colocou a mão nas minhas pernas e disse que queria transar comigo. Eu então comecei a chorar, e ele pediu o dinheiro que eu havia sacado para me deixar descer — conta ela, que preferiu entregar o dinheiro e se livrar da ameaça, mas decidiu não denunciar para evitar o transtorno de ter de provar o assédio.
Depois dessa experiência, a rotina da jovem, que já era cercada de pequenos cuidados pelo simples fato de ser mulher, ganhou novos detalhes: ela não usa mais aplicativos de transporte quando está sozinha, e agora só anda com taxistas mulheres. O caso não é raro, e a divulgação de episódios parecidos tem levado parte do público feminino a migrar para serviços personalizados, que disponibilizem para elas motoristas mulheres.
A sensação de insegurança criou um terreno fértil para o surgimento de aplicativos que se propõem a evitar que as mulheres passem por situações de violência ou de constrangimento com cantadas e ameaças. Um deles, o “Lady Driver”, que já opera em São Paulo e Guarulhos, chega ao Rio até o final do ano. Com 8.700 motoristas mulheres cadastradas, a plataforma foi criada por Gabriela Correa depois de ela mesma ter sido vítima de assédio em um táxi.
— Agora muitas meninas estão criando coragem de falar, e isso é muito importante. As mulheres que usam o meu aplicativo adoram o serviço simplesmente por se sentirem seguras para usar um short — afirma Gabriela. — Eu me sentia muito vulnerável, ficava sempre alerta. A gente tem que falar do assédio, mas também queremos que mais mulheres estejam no volante.
Gabriela Correa criou aplicativo Lady Driver após sofrer assédio –
Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Uma pesquisa divulgada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), em 2016, sobre o perfil dos taxistas no Brasil revelou que 97,3% eram homens. O estudo entrevistou motoristas em regiões metropolitanas de 12 estados do país. O estudo mostrou ainda que metade dos profissionais que trabalham na área tem entre 30 e 49 anos.
Embora faltem pesquisas similares sobre motoristas particulares recrutados pelos aplicativos, o padrão neste segmento começa a mudar. É o que dizem empreendedoras como Denise Azevedo, uma das criadoras do “Táxi Rosa”, que oferece transporte feito só por mulheres ao volante.
— É uma profissão tradicionalmente masculina, mas de um tempo para cá as mulheres estão entrando com mais facilidade nesse mercado. Recebemos diversos e-mails de mulheres dizendo que gostariam de ser taxistas — diz.
CONDUTORAS BUSCAM SEGURANÇA
A condutora relata que, por questões de segurança, o público feminino é fiel ao serviço personalizado ainda que, muitas vezes, a baixa disponibilidade de motoristas faça com que a chamada demore a ser atendida:
— Às vezes falta motorista para atender, mas, por incrível que pareça, a cliente espera vagar um carro. Em 99% das vezes nosso suporte entra em contato com a passageira e ela prefere aguardar.
O modelo também é eficaz para a segurança das motoristas que também preferem levar passageiras do sexo feminino. Maria Cláudia Fernandes, condutora da Femitaxi, conta que já foi constrangida por homens na condição de passageiros.
— Já trabalhei à noite, o pessoal bebia e, quando entrava no táxi, fazia graça, chamava para sair — diz, acrescentando que a maioria das passageiras se mostra aliviada por ter uma motorista mulher. — Uma vez uma moça pegou meu táxi apavorada e disse que o motorista tinha acabado de assediá-la em outro carro. Ela desceu do táxi dele, entrou no meu e disse: “Que bom que você é mulher”. Ficou aliviada. Isso é frequente.
Os relatos de assédio e abuso sexual no transporte com carros particulares se espalham pela internet — como o da escritora Clara Averbuck, que em agosto relatou ter sido estuprada por um motorista da Uber em São Paulo — e mudam o comportamento das usuárias de transporte. No entanto, apenas parte dos abusos chega às autoridades pela dificuldade que as mulheres têm de prová-los.
Roberta Pereira, de 46 anos, passou por um drama no início de agosto. A executiva de contas voltava para a casa em um carro da Uber quando foi atacada pelo motorista com uma arma de choque. Na ocasião, após efetuar duas descargas elétricas na passageira, o homem fugiu levando seu celular. A Polícia Civil prendeu o acusado, na última quarta-feira, mas as marcas da violência permanecem.
— Não pego mais veículo de aplicativo, só táxis de cooperativa, que ficam no ponto embaixo da minha casa. Depois disso, também não saio mais à noite, não tenho mais vida social. Até hoje a cena dele avançando em mim fica na minha cabeça. Eu era uma mulher sozinha na madrugada. Se fosse um homem, ele não teria feito isso — diz Roberta.
APLICATIVOS TENTAM PROMOVER CONSCIENTIZAÇÃO
Diante da preocupação crescente das mulheres, os aplicativos mais populares, como Uber, Cabify e 99 Táxis têm se movimentado para garantir um ambiente mais seguro para as passageiras. Há desde campanhas de conscientização junto aos motoristas até inclusão de uma frota específica de carros dirigidos por mulheres. O 99 Táxis lançou, em setembro, a opção “motorista mulher”. De acordo com a empresa, mais de 70% de suas usuárias já usaram essa alternativa. O serviço está disponível em São Paulo, Rio de Janeiro e Santos. No início do ano, a empresa também realizou treinamentos com seus motoristas em parceria com o coletivo feminino “Vamos juntas”.
Em março deste ano, a Uber também produziu uma campanha de prevenção ao assédio com palestras, cartilhas e vídeos distribuídos a seus motoristas. O aplicativo permite que os passageiros compartilhem seu trajeto com outra pessoa. A gerente de vendas da Cabify, Luisa Aguiar, explicou que a empresa optou por não oferecer algo exclusivo para um gênero porque prefere focar na segurança para todos os seus usuários:
— Trabalhamos muito na seleção dos motoristas, que são treinados sobre como se portar quando há uma mulher no carro. São orientados, por exemplo, sobre como posicionar o retrovisor, para não trocar olhares com as passageiras, e a não virar para trás para falar com elas. Cerca de 70% dos nossos clientes são mulheres.
MOVIMENTO ‘VAMOS JUNTAS’ DÁ DICAS PARA IDENTIFICAR ABUSO

O assédio:
Assédio sexual não é paquera, nem elogio. É uma manifestação de cunho sexual independente da vontade da pessoa a quem é dirigida. Podem ser palavras ou gestos que exponham a mulher ou a façam se sentir invadida, ameaçada ou encabulada.Se ela se sentiu dessa maneira por conta de algum contato que identificou cunho sexual, é assédio.
Sinais:
Entre diversas manifestações que podem ser encaradas como assédio, destacam-se comentários sobre o corpo da mulher e contato físico forçado; ações como puxar o cabelo, o braço e a roupa sem o consentimento da mulher. Passar a mão no corpo da mulher sem o consentimento dela, olhá-la fixamente e insinuar excitação também configuram assédio.
Onde ele acontece?
O assédio pode acontecer em qualquer lugar — rua, ônibus, táxi, escola, ambiente de trabalho, festa.Não há um local específico para que ele se manifeste. Mulheres de todas as idades e até crianças sofrem assédio diariamente no Brasil. Segundo pesquisa divulgada pela ActionAid, 86% das mulheres brasileiras já passaram por isso em público.
Como denunciar?
A denúncia pode ser feita a um policial próximo, em uma delegacia, ou ainda pelo telefone 180. É importante denunciar para autoridades, empresas de ônibus ou de aplicativos de transporte, para aumentar as chances de que a pessoa seja identificada e também para ajudar na conscientização. Se vir uma mulher sendo assediada, mostre-se ao lado dela.
É crime no Brasil?
Não há, no Brasil, um crime que corresponda ao assédio de rua. A figura penal que mais se aproxima é contravenção (que é um delito de menor potencial ofensivo, e penas muito baixas) de importunação ao pudor.O assédio acaba não se encaixando em nenhum crime previsto, fazendo com que ele seja ignorado pelo sistema judiciário.
O Globo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Pular para o conteúdo