Faz tempo que o transporte público vai mal das pernas, melhor: dos pneus, se levarmos em conta o veículo que o representa. Bom mesmo seria poder pegar o sentido literal dessa analogia e simplesmente trocar os pneus que não estão em bom estado. Mas a verdade é que os problemas do setor vão muito além de falhas mecânicas ou da necessidade pontual de substituição de peças. A crise é estrutural. E abrange diversas questões que, se não forem enfrentadas, inviabilizarão o principal meio de locomoção da população brasileira.
Ilustração/UNIBUS RN |
Desde 1995, quando os ônibus começaram a perder passageiros com mais intensidade, a situação vem preocupando o setor. O incentivo à aquisição de automóveis e a falta de priorização do transporte público aumentaram os congestionamentos na mesma medida em que elevaram a tarifa e reduziram a qualidade do serviço. A partir daí, foi crescente a queda da demanda, que já despencou 44% nas duas últimas décadas, segundo dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Somente no período de 2013 a 2017, a perda foi de 25%.
Em 2013, quando as manifestações populares contra o aumento das passagens ocuparam as ruas, as atenções se voltaram para o tema. Um Pacto Nacional pela Mobilidade Urbana, a ser construído pela sociedade, pelo governo federal, por governadores e prefeitos, chegou a ser anunciado, mas não saiu do papel. No ano seguinte, na esperança de trazer o tema para o debate eleitoral, a NTU apresentou uma carta aberta aos principais candidatos à presidência da República, com sete propostas para a mobilidade urbana, sem resultados práticos. “O assunto ficou fora da pauta dos debates na última eleição. Foi pouco falado e não constava nos programas de governo, sinalizando que mobilidade urbana não era objeto de preocupação”, lamenta o presidente executivo da NTU, Otávio Cunha.
E, apesar de o transporte público ter se tornado um direito social em setembro de 2015, com a aprovação de uma emenda constitucional, a frustração prosseguiu até chegar à pior crise que o setor já enfrentou, com um terço das empresas endividadas e várias até mesmo fechando as portas, além de usuários sendo obrigados a trocar o ônibus pelo deslocamento a pé. Tal cenário poderia provocar desespero e desânimo. No entanto, inspirou reação.
Em setembro de 2017, a NTU convocou um grupo formado por conselheiros e membros da entidade, empresários, representantes de associações de empresas de transporte e de sindicatos, bem como instituições ligadas aos serviços de transportes urbanos. O objetivo? Desenvolver um trabalho estratégico de longo prazo para superar as dificuldades e melhorar o sistema de transporte público em todo o Brasil, com base em um diagnóstico completo dos problemas do setor e na adoção de ações concretas em várias frentes. “Estamos vivendo uma crise sem precedentes, precisávamos fazer mais. Formamos um grupo de trabalho heterogêneo, incluindo os interessados do setor e da área financeira, para trazer uma nova visão, até porque boa parte das soluções não está dentro das empresas, mas fora delas”, afirma Cunha.
Estudos Estratégicos
Desde que foi criado, o Grupo de Estudos Estratégicos (GEE) da NTU tem se reunido mensalmente. Ao longo de sete encontros discutiram-se os entraves do transporte público e da mobilidade urbana e realizou-se o mapeamento do que já foi feito, com avaliação do que funcionou e do que falhou. O diagnóstico setorial resultou em num plano de ação, englobando todos os pontos mais sensíveis e seus principais desafios e soluções.
O trabalho do GEE não é apenas mais uma iniciativa voltada para a análise do setor; o trabalho apresenta diferenciais, como a amplitude – em vez de examinar pontos a serem resolvidos, o grupo buscou as raízes e as relações entre os problemas, contemplando suas várias dimensões. Dessa forma, o trabalho prevê a elaboração de ações integradas e a abertura de portas para um maior diálogo com a sociedade, outras instituições e o poder público. Além disso, as reuniões têm sido um espaço de troca de experiências que estão ajudando na busca por modelos e ideias eficientes.
“As discussões são muito produtivas. Um fala de determinado problema, outro opina sobre soluções, dá exemplos baseados em ações que deram certo ou não em sua cidade. Em um dos debates, percebemos que o Rio de Janeiro enfrentava um problema que já havia sido resolvido em outro local”, conta a diretora de Mobilidade Urbana da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), Richele Cabral. “As reuniões estão cada vez mais produtivas e as pessoas, mais alinhadas. Estou otimista”, anima-se o conselheiro fiscal da NTU no Espírito Santo e também membro do grupo estratégico, Murilo Andrade.
Principais desafios
No topo da lista dos desafios e entraves identificados pelo grupo está a falta de apoio da sociedade ao transporte público, fruto da imagem negativa do setor e do desconhecimento da população sobre as regras de concessão e operação do serviço, bem como do papel do poder público e das empresas operadoras. O passageiro também não conhece os custos envolvidos na operação, a remuneração das empresas e a maneira de calcular a tarifa. Do lado do setor, falta conhecimento a respeito dos usuários e suas expectativas.
Em um esforço para promover a aproximação com o público usuário e a sociedade em geral, o Grupo Estratégico propôs a criação de uma agenda positiva, que já resultou nas campanhas contra o assédio sexual nos coletivos, em favor do meio ambiente, e segurança no trânsito (Maio Amarelo), além do apoio a movimentos como Outubro Rosa e Novembro Azul.
Fontes de custeio e gratuidades
Outros desafios estão ligados à insustentabilidade técnica e financeira do modelo atual de financiamento por meio da tarifa paga pelo usuário. De 1993 a 2016, houve queda de 37,3% na produtividade das empresas, devido à queda de demandas e a outras dificuldades enfrentadas pelo setor. Além disso, pesquisa realizada em parceria com o Instituto FSB Pesquisa, em maio de 2017, revelou a preocupante situação econômico- financeira das empresas de transporte público urbano. Nas entrevistas feitas com 225 empresas grandes, médias e pequenas em 115 municípios, descobriu-se que 67,6% possuem algum tipo de dívida. Dessas, 29,1% têm débitos que já ocupam 40% do faturamento anual. Segundo a pesquisa, 56 empresas fecharam as portas no período de 2014 a 2016.
Outro fator que tem sido uma grande adversidade para o segmento empresarial é a falta de fontes alternativas de custeio e a desoneração do transporte público. Esses dois fatores são a causa de muitos problemas enfrentados por operadores e usuários do transporte público, financiado hoje praticamente pelas tarifas pagas pelos passageiros, explica o presidente executivo da NTU, Otávio Cunha.
“A tarifa sobe, mas nada melhora. O atual modelo de custeio do sistema não funciona mais. Deu certo no passado, quando mais pessoas utilizavam e o transporte público era competitivo. Mas, agora, precisa ser revisto. Um transporte público de boa qualidade custa muito caro. E se hoje a população reclama que é caro e não atende às necessidades, temos de repensar e buscar novas formas de financiá-lo que atraiam usuários, a sociedade e o poder público”, adverte Cunha. A busca de soluções também foi escolhida como prioridade pela NTU, que tem apoiado, entre outras ações, a proposta da Frente Nacional de Prefeitos (FNP) de criação da CIDE Verde, contribuição que incidiria sobre a gasolina, o etanol e o gás veicular para financiar a redução do valor da tarifa do transporte público.
A alta dos insumos, como o preço do diesel – que nas duas últimas décadas subiu 250% acima da inflação, enquanto a gasolina aumentou apenas 56% –, eleva os custos da operação e, consequentemente, pressiona a tarifa, que não contempla a realidade de custos do setor. As gratuidades também não ajudam. Segundo o Anuário 2014/2015 da NTU, o número de passageiros que circula de graça ou com algum desconto aumenta cerca de 1% ao ano, com acréscimo de 120 milhões de viagens anuais desde 2013. Assim, quem arca com a despesa é o usuário pagante.
Para Otávio Cunha, a atual lógica das gratuidades que chegam a um em cada cinco usuários é perversa e precisa ser revista. “Não estamos questionando direitos, mas quem paga a conta. Cada área – educação, no caso dos estudantes; assistência social, no caso dos idosos – deveria pagar a sua parcela. O passageiro não pode arcar com o preço das políticas sociais”, denuncia o presidente executivo da NTU.
A baixa capacidade de investimento das empresas, incluindo as poucas linhas de financiamento existentes, e a insegurança do retorno do capital investido também foram destacados. Da mesma forma, o investimento insuficiente em infraestrutura por parte do poder público e a pouca disponibilidade de programas permanentes para financiamento de veículos também dificultam o avanço do setor.
Insegurança jurídica, alinhamento e transparência
Contratos precários, em que os serviços são definidos de forma muito subjetiva e sem especificação dos riscos da operação, deixando toda a responsabilidade para o operador, é a realidade da atividade empresarial na atualidade. Além disso, a insegurança jurídica também ocorre pela má gestão dos contratos e a judicialização dos reajustes tarifários, que fazem dos aumentos previstos em contratos entre empresa e poder público um verdadeiro palanque eleitoral.
Outra questão que preocupa são os serviços sob demanda por aplicativos ou de carona solidária, que passam a oferecer opções compartilhadas com características de transporte coletivo que podem competir, em condições desiguais, com os serviços públicos, afetando o equilíbrio das redes de transporte.
Um discurso unificado do setor, com mais alinhamento, compreensão e ações conjuntas dos operadores, é mais um ponto observado pelo GEE, assim como a adoção de novos mecanismos de transparência.
Além do alinhamento empresarial buscado pelo grupo, também se espera que o diálogo com o poder público (Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público) seja estreitado e, dessa forma, todas as esferas do poder público passem a priorizar e fortalecer o transporte coletivo por meio de políticas públicas para o setor.
Qualidade no transporte e novos parceiros
Recuperar a demanda e atrair novos usuários, por meio da oferta de serviços de boa qualidade, estão entre as demandas mais urgentes. Isso inclui qualificar a mão de obra, integrar modais de transporte, flexibilizar os serviços e oferecer infraestrutura adequada para a operação dos coletivos urbanos, com aumento da velocidade média de circulação. Sobre este último item, uma excelente solução são as faixas exclusivas: com elas, a velocidade média dos ônibus subiu de 10,5 km/h, em 2012, para 22 km/h este ano em Fortaleza (CE), reduzindo o tempo de viagem e aumentando a regularidade do serviço.
“Eu brinco que, se servir café e água no ônibus, mas ele levar três horas para chegar ao destino, aquela qualificação terá sido em vão. Além de trazer mais qualidade, é essencial reduzir o custo e fazer o usuário ficar menos tempo no trânsito”, aponta a diretora de Mobilidade Urbana da Fetranspor, Richele Cabral.
A priorização do transporte coletivo no sistema viário é justificável até por uma questão de equidade social. Pesquisa realizada pela CNT indica que nos eixos estruturais das grandes cidades brasileiras o automóvel ocupa cerca de 60% do espaço viário e transporta apenas 20% dos passageiros, enquanto os ônibus ocupam 25% do mesmo espaço e transportam quase 70%.
A priorização do transporte coletivo também foi definida pela NTU como ação prioritária; desde o final do ano passado, a entidade vem levantando informações sobre os projetos suspensos ou em atraso para promover a retomada dos trabalhos junto com o Ministério das Cidades e prefeituras.
Por fim, foi identificada como mais um desafio para o segmento empresarial a ampliação do diálogo com outros setores relacionados com o transporte público, como as áreas de meio ambiente, saúde e desenvolvimento social. O GEE recomendou o trabalho conjunto com essas áreas por meio de parcerias estratégicas que podem integrar e valorizar o transporte público, fazendo com que o setor e a sociedade alcancem a tão sonhada sustentabilidade.
Para Murilo Andrade, conselheiro da NTU, a formação do grupo estratégico foi um importante passo para mudar a realidade do setor: “As pessoas estão com a cabeça aberta para soluções integradas e inovadoras, para melhorar a vida do usuário. Sobretudo, para buscar novas formas de resolver problemas antigos”.
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