As portas se abrem e revelam um paredão de gente, que parece impenetrável. Duas ou três pessoas investem contra a massa humana. Resolvo arriscar. Descubro ser impossível abrir espaço no vagão da linha 11 Coral sem o uso de alguma força física. Empurra. Espreme. Encolhe. Encaixa. E, então, tenta respirar.
Foto: Zanone Fraissat/FolhaPress |
Eram oito horas da manhã de uma sexta-feira em São Paulo quando esse trem abarrotado deixou a plataforma da estação Corinthians-Itaquera rumo ao centro da cidade. Ali, o único movimento possível era o dos olhos e dos dedos na tela do celular.
A linha da Companhia de Trens Metropolitanos (CPTM) foi apontada como a segunda mais congestionada do mundo, no horário das 6h às 10h, de acordo com o Google Maps.
O aplicativo informa ter coletado informações de “milhões de usuários” em 200 cidades do mundo. Ao final de suas viagens, o programa pedia que os usuários classificassem o transporte utilizado de acordo com quatro categorias: 1) muitos lugares vazios; 2) alguns lugares vazios; 3) apenas espaço em pé; 4) apenas espaço em pé e apertado.
Com essas informações, a empresa criou um ranking da percepção de apertamento em que São Paulo marca presença com três das dez linhas percebidas como as mais lotadas do mundo.
A capital paulista ocupa a segunda, quarta e oitava posições na lista das dez linhas onde o usuário sente viajar mais apertado. As linhas que ocupam essas posições são, respectivamente, 11 Coral, 8 Diamante e 9 Esmeralda, todas da CPTM.
O ranking é liderado pela linha Urquiza, de Buenos Aires, cidade que também ocupa três posições entre as top 10 da lotação, que contempla ainda rotas apertadas de trens e metrô de Paris, Tóquio e Nova York. A lista foi elaborada a partir de informações coletadas pelo aplicativo com seus usuários entre outubro de 2018 e junho de 2019.
Com esses dados, o aplicativo quer criar previsões de lotação de diferentes rotas de transporte público em lugares tão distintos como São Paulo, Nova Déli (Índia) e Milão (Itália).
No aperto da Linha 11, também conhecida como Expresso Leste, às 8h da manhã, a projetista Jennifer Chaves, 21, me conta que já teve o braço dormente porque ficou preso de mau jeito entre duas pessoas e que, se seu celular toca e não está na sua mão, ela já sabe que será impossível atendê-lo. “E, no fim de tarde, é ainda pior”, afirma ela.
Em 2015, esta linha era a mais cheia do sistema de transporte sobre trilhos de São Paulo, com média de 8,1 passageiros por m² no horário de pico da tarde.
O parâmetro internacional do volume de passageiros considerado confortável é de quatro por m². O nível considerado “suportável”, de acordo com referências internacionais, é de seis por m².
Passageira deste trajeto há seis anos, a administradora Aline Gustinelli, 29, diz que os vagões da Linha 11-Coral desafiam as leis da Física.
“Aqui é quase como se dois corpos pudessem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo”, brinca ela, que enfrentou a superlotação da linha ao longo de duas gravidezes, nas quais nunca conseguiu alcançar um assento preferencial.
Ainda que a primeira colocada no ranking de percepção do Google Maps seja condizente com o dado técnico de 2015, nem a Secretaria dos Transportes Metropolitanos nem a CPTM informaram quais os dados atuais de lotação de vagões nas diferentes linhas do sistema em horários de pico.
De acordo com dados de 2015, a segunda linha mais congestionada era a 7 Rubi, da CPTM, com 7,6 pessoas por m² e, em terceiro lugar, a linha 3 Vermelha do metrô, com 7,4 por m². De lá para cá, no entanto, muita coisa pode ter mudado.
Mas qual o motivo para as linhas de transporte sobre trilhos operarem com tamanha lotação nos horários de pico?
“A lotação é produto da configuração da rede, basicamente radial [do centro para a periferia e vice-versa], e da preferência por um sistema de maior qualidade em relação aos demais”, avalia Luiz Carlos Mantovani Néspoli, superintendente da ANTP (Associação Nacional de Transporte Público).
Segundo ele, o transporte sobre trilhos cresceu menos do que o necessário. “Nos últimos 50 anos, os governos investiram quatro vezes mais na infraestrutura para automóveis do que no transporte público.”
Para Rogério Belda, ex-diretor do metrô, no Brasil “houve um atraso na percepção do que seria o desclocamento de uma grande cidade”. “Aqui existia essa ideia de que pobre andava de trem, e rico, de carro. Hoje, todo mundo pode ter um automóvel, então, essa distinção acabou. E, tecnicamente, não existe uma vantagem clara, para além da questão do conforto, do carro em relação ao transporte sobre trilhos.”
Segundo ele, a questão hoje é de planejamento. “Não dá pra fazer uma linha de uma hora pra outra. Os estudos urbanísticos precisam de continuidade. E os políticos querem milagre, e não planejamento.”
O engenheiro de transportes Sérgio Ejzenberg chama a atenção para as vantagens dos operadores do sistema diante da degradação do conforto. “Poucos trens entupidos dão mais lucro porque diminuem os custos. Por isso, a concedente deve fiscalizar a operação para que haja um ponto de equilíbrio.”
Ainda assim, diz, a lentidão na ampliação do sistema é a principal questão. “Nossa rede é um terço do que deveria ser. Por isso somos campeões de lotação. Fazemos metrô na velocidade de tartaruga manca”, ironiza.
“Não é possível construirmos 2 km de metrô por ano enquanto Barcelona já fez 18 km por ano, Xangai, 50 km por ano”, compara. “Isso sem falar que pagamos um custo enorme e que as obras são alvos constantes de denúncias de cartel.”
No início de julho, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) condenou 11 empresas por formação de cartel em obras de trens e metrô, a maior parte em São Paulo.
“Tudo está errado. E nós pagamos as contas desse circo”, critica o engenheiro, para quem o ranking do Google, ainda que não tenha valor técnico, “funciona como se fosse uma bússola” da percepção dos usuários do sistema.
Em nota, o Google informou que publica “apenas as previsões com alto nível de confiança” que são verificadas, entre outras maneiras, “com operadores em cada uma das cidades” mensuradas e que estudos com usuários-passageiros foram feitos nas cidades em que este novo recurso está sendo testado.
Em nota, a Secretaria dos Transportes Metropolitanos informa que “não teve acesso à íntegra da pesquisa realizada pela Google e não reconhece o resultado”.
A recepcionista Ana Claudia Costa, que viaja diariamente de Poá (Grande São Paulo) até a região central da cidade na Linha 11-Coral, diz que já cansou de presenciar brigas e desmaios no trajeto por causa da lotação.
Ela diz ter se identificado com a vice-liderança da linha entre aquelas percebidas como as mais lotadas do mundo. “Eu já imaginava que era algo assim. Só me surpreende que existe, em algum lugar, outra pior.”
Dizem que, com o passar do tempo, os passageiros tendem a normalizar o desconforto de suas viagens abarrotadas.
Em minha estréia na Linha 11, espremida entre uma entrevistada e dezenas de estranhos às 8h de uma sexta-feira, eu me pergunto porque o aplicativo não cria uma quinta opção de feedback de usuários:”Socorro”.
FOLHA – ON LINE