Você é um volvista, mercedista ou scanista? Você colocaria sua vida em risco na saída de uma rodoviária para tentar conseguir a foto de um pneu? Você cruzaria o país para ver um ônibus de 1948?
Se nada disso faz sentido para você, talvez você não seja um busólogo.
Encontrão de Fim de Ano 2017, realizado em Natal-RN |
Tem gente que gosta de carro antigo, tem gente que vai ao aeroporto só para ver os novos aviões, tem gente que não perde uma exposição de motos, tem quem ama bicicletas. E tem gente que gosta de ônibus.
Adamo Bazani, 40, sente-se confortável no pátio de manobras do Terminal Tietê, em São Paulo. Sabe reconhecer numa batida de olho os modelos, mesmo que para os olhos leigos cada um dos detalhes dos ônibus não signifique muito.
Dono de um dos principais sites de transporte do país, o Diário do Transporte, Adamo começou a gostar de ônibus aos 5, quando pediu aos pais para fazer um turno inteiro ao lado de um motorista. Ficou oito horas fazendo o percurso de Santo André para a capital. Voltou para a casa em êxtase.
Em seu aniversário de 15 anos, pediu como presente especial ao seu incrédulo pai uma visita a uma garagem de ônibus. Chegou a esperar por três horas num ponto de ônibus até passar um Vitória Scania, modelo que queria conhecer.
Hoje tem 450 miniaturas de ônibus em casa. Boa parte delas de veículos da Padroeira do Brasil, viação cujos ônibus ele frequentava quando criança.
“Como busólogo, eu gosto do design de carroceria. Quando era pequeno, tinha uma empresa fictícia, a Caab, Carrocerias de Automóveis Adamo do Brasil. E trocava desenhos com um rapaz do meu bairro, que era dono de uma empresa também fictícia”.
Adamo Bazani comanda hoje um dos principais portais de transpote do país, o Diário do Transporte. Foto: Zanone Fraissat/Folhapress |
Ninguém sabe ao certo quantos busólogos existem no país. Há quem fale em 30 mil e há quem calcule em 180 mil fãs de ônibus.
Mas existe um certo consenso sobre quem começou essa história: Hélio Luiz de Oliveira. Ele é apontado como o primeiro brasileiro a ter sido chamado de busólogo.
Trabalhando em 1985 na Thamco, em São Paulo —empresa que se tornou conhecida por produzir ônibus de dois andares encomendados pelo prefeito Jânio Quadros (1986-1989)—, Oliveira impressionou colegas estrangeiros com seu repertório e ganhou assim o epíteto de busólogo. “Eles diziam ‘esse cara é um filósofo do ônibus’”, conta Oliveira.
Atualmente com 56 anos, o primeiro busólogo brasileiro participa de 57 grupos de WhatsApp sobre o tema, cada um com cerca de 300 membros. No entanto, ele precisou de muita força nos punhos para construir um acervo que hoje é invejado.
No final da década de 1970, enviou cartas para consulados e embaixadas no Brasil pedindo os endereços de todos os fabricantes de ônibus nos respectivos países. Escrevia, então, para as próprias empresas, pedindo mais informações. Dessa forma, catalogou 276 produtoras de carrocerias até 1979.
Oliveira tem cultivado sua paixão pelos ônibus na revista Inbus Transport, da qual é diretor-presidente, e também em viagens de longa duração, nas quais ele desfruta do percurso e do veículo, mas pouco do destino. Recentemente, por exemplo, foi de São Paulo a Fortaleza, ficou 24h na cidade cearense, e embarcou novamente no ônibus.
Hoje, no horizonte, desponta um desafio internacional: a rota São Paulo-Lima, no Peru. Quase 9.000 km de deleite, contando a ida e a volta.
“O busólogo é um cara técnico. Não é o cara que acha que o ônibus é um pão de forma gigante. Eu, por exemplo, consigo identificar o ônibus apenas pelo cubo da roda, ou seja, pelas características como o design e o número de parafusos”, explica. A produção de saber especializado é uma das consequências positivas da dedicação dos aficionados.
Hélio Luiz de Oliveira, 56, conhecido como o primeiro busólogo do Brasil – Foto: Arquivo Pessoal |
Um bom termômetro da popularidade da busologia no país é o BusBrasil Fest, que acontecerá pela 13ª vez em novembro. No ano passado, 15 mil pessoas foram ver os 175 ônibus expostos, entre relíquias de colecionadores e novidades de fabricantes, na praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo.
“Quando era mais novo, pensava que era o único louco que gostava de ônibus. Em 1999, com a popularização da internet, conheci pessoas de outras cidades. Em 2001, fizemos a primeira edição do evento, numa garagem, com 11 ônibus e 50 pessoas. Neste ano, esperamos caravana da Bahia, do Rio, de Minas, do Paraná, do Uruguai, da Argentina, dos Estados Unidos”, diz Juverci de Melo, 40, que além de organizador do festival é artesão (cria miniaturas de ônibus de papel) e administra o site Portal do Ônibus.
A internet é considerada fundamental para consolidação desse grupo, que primeiro se uniu em fotologs e blogs, depois em comunidades no Orkut e hoje acumulam milhares de seguidores em seus canais no Youtube e suas contas no Instagram.
Nas redes, é possível encontrar montagens com a ativista Greta Thunberg carregando placas que dizem “Vissta Bus é melhor que o Paradiso G7”, “#VoltaG6” e “Chassi bom é o K113 moralizador”. Outra publicação diz “Noite boa para correr berrando atrás de um Invictus”.
Para muita gente essas mensagens não querem dizer nada, mas na página do Facebook Humor Busólogo acumulam dezenas de curtidas e comentários.
Administrada por quatro jovens (um da Paraíba, um de Pernambuco, um do Rio e um do Paraná), a página tem 9 mil seguidores.
“Damos dicas, de forma bem humorada, de como não fazer algumas coisas para não passar vergonha. Se você procurar ‘busólogos’ no YouTube vai ver muita gente zoando. No Rio, tem um rapaz que gravou um vídeo correndo atrás de um modelo Invictus da Novo Horizonte. Essas pessoas queimam o filme de quem faz do hobby uma coisa mais sadia”, diz Lucas Lima, 23, um dos administradores da página.
Essa “molecada mais nova”, nas palavras de Bazani, são a maior parte da comunidade de busólogos, que se encontram em rodoviárias para checar as novidades. É dessa turma que costumam vir as divisões entre mercedistas (que gostam dos chassis de ônibus da alemã Mercedes-Benz), scanistas (da sueca Scania) e volvistas (da também sueca Volvo) —que fazem a piada “volvado seja”.
Bazani se empolga com a carroceria dos veículos, ou seja, a parte que está acima do chassi. Tem também gente que gosta dos faróis, do motor, da tecnologia.
Esse é um primeiro grupo de busólogos, os que se empolgam com a máquina, que são geralmente pessoas mais novas.
Há também os que se encantam pela história, que frequentam museus e são fãs de modelos antigos. E os que gostam do sistema de transporte público. Bazani diz que já passou pelas três categorias.
O bancário aposentado Mário Custódio, 63, guarda um acervo de quase 20 mil fotos de ônibus, tiradas desde 1975. Hoje ele pesquisa a pintura dos ônibus —é contra a pintura padronizada de ônibus estaduais, que, segundo ele, confunde os passageiros— e é saudoso dos tempos que São Paulo teve os “saia e blusa”: ônibus que tinham uma faixa de baixo, que indicava a região, imposta pela prefeitura, e uma outra de cima, escolhida pela viação.
A padronização da pintura foi motivo de cizânia da comunidade busóloga do Rio, quando a prefeitura da gestão Eduardo Paes decidiu, em 2010, que todos os ônibus municipais deveriam ter a mesma identidade visual. Favoráveis à padronização foram classificados como direitistas, associados à ditadura militar e chamados de “burrólogos” ou “brutólogos”.
Para os busólogos, os ônibus têm valor afetivo passado, como referência a outro período da vida, e presente, como intermediários de relações com semelhantes, explica o cientista social Fábio Viana Ribeiro em sua tese de doutorado “Entre os extremos do consumo”, defendida na PUC-SP, que trata de grupos de fãs e colecionadores.
Os aficionados, argumenta a tese, separam uma parte do mundo “dentro da qual é possível parar o tempo e viver dentro de uma ordem mais estável e satisfatória”.
Diferentemente do que acontece na vida cotidiana, na qual a “‘busca pela felicidade'” deverá ser feita em meio a muitas e variadas dificuldades, o universo dos colecionadores e aficionados é constituído “daquilo de que se gosta, povoado por outros que que irão compartilhar desse mesmo gosto, alheio a inconvenientes de ordem institucional.”
Folha de SP