Do Valor Econômico
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil/Ilustração/Fotos Públicas
Menos de seis meses depois do pico da quarentena, que silenciou fábricas e fechou concessionárias, a recuperação do mercado de carros novos tem surpreendido os vendedores. Outubro registrou o maior volume do ano e o quarto mês consecutivo de crescimento. No caso de lançamentos, há filas de espera de mais de 60 dias. Segundo relatam os vendedores, circula pelas lojas de automóveis o consumidor que readquiriu confiança no trabalho, deixou de gastar com viagem de avião, quer fugir do transporte coletivo ou cansou das aplicações financeiras. Mas a queda nos estoques reflete, ao mesmo tempo, a decisão da indústria que, incerta em relação ao que vem pela frente, reduziu o ritmo de produção, abriu programas de demissão voluntária e cortou turnos.
“As notícias são boas; a única ruim é a falta de carros”, afirma Gilson Andelmi, diretor de vendas do Grupo Amazonas, empresa paulista que reúne concessionárias das marcas Fiat, Jeep, Peugeot, Citroën e Ford. Nas lojas do grupo, “falta um pouco de tudo”. Mas a maior fila de espera, em torno de 60 dias, é para quem quer a nova picape Strada, da Fiat. Isso vale, diz, tanto para a versão cabine simples como a dupla.
Em outubro, foram emplacados 215 mil veículos, incluindo caminhões e ônibus, volume 3,54% maior do que em setembro. A recuperação é mais evidente quando se leva em conta que o número de dias úteis foi igual ao de setembro, já que os licenciamentos são feitos quando os postos do Detran funcionam.
“Notamos que os clientes estão mais confiantes, tomando a decisão de compra, facilitada pela oferta de crédito”, afirma Alarico Assumpção Júnior, presidente da Federação Nacional da Distribuição de Veículos (Fenabrave), que representa os concessionários. Há seis meses, quando o setor operava com quedas de vendas em torno de 80% em relação a 2019, Assumpção Júnior estava envolvido em reuniões com prefeitos de todo o país, quase suplicando que autorizassem a reabertura das lojas.
O cenário mudou, mas não o suficiente para convencer os fabricantes de veículos, menos preocupados com o dia a dia dos balcões de venda e mais atentos ao cenário geral. Embora o ritmo seja de recuperação, na comparação com um ano atrás volumes mensais e acumulados no ano estão menores.
As vendas de outubro caíram 15,11% em relação ao mesmo mês de 2019. No acumulado de dez meses, o licenciamento de 2,47 milhões de veículos representou retração de 25,74% em relação ao mesmo período do ano passado. Isso significa que em quase um ano o mercado brasileiro encolheu um quarto.
E não vai se recuperar tão cedo; não em menos do que três ou quatro anos, segundo o presidente da Volkswagen na América Latina, Pablo Di Si. “Se eu achasse que fosse em um ano, não teria feito PDV”, afirma, em relação ao programa de demissões voluntárias, aberto há algumas semanas na montadora e sem prazo definido para terminar. “Precisamos ter muito cuidado com o caixa”, afirma Di Si. Como toda a indústria automobilística, a Volks está sob pressão da matriz para evitar prejuízos no Brasil.
Segundo Di Si, a falta de produtos é resultado da estratégia da companhia de reduzir estoques. Ao mesmo tempo, reflete “problemas pontuais”, decorrentes da própria pandemia, como a logística de peças e dos veículos. “Como negócio é mais saudável trabalhar com menos estoques e sem lojas obrigadas a dar grandes descontos para vender”, destaca.
Mesmo assim, Marcos Leite, gerente de vendas da Amazon, concessionária Volkswagen, gostaria de ter mais carros em estoque. Há dez dias ele esgotou as vendas do Nivus, último lançamento da marca, para este mês. Quem quiser o modelo terá de esperar até dezembro. O Tiguan, veículo importado, não chegará à concessionária antes de fevereiro ou março, diz. Segundo Leite, desde setembro, o mercado de novos está em torno de 90% do que era antes da pandemia.
O carro transformou-se num bem cobiçado por quem ficou com mais dinheiro no bolso porque deixou de embarcar num passeio ao exterior, por exemplo.
Para compensar a redução nos descontos, que acompanham a queda nos estoques, os concessionários valorizam mais o carro usado, que também tem sido bastante procurado, principalmente por quem decidiu fugir do transporte público em razão da pandemia. Em alguns casos, o veículo não chega sequer a ser exposto na loja. É vendido, por meio de fotos, antes de o dono levá-lo à concessionária para trocar pelo novo.
E entre o público que circula nas concessionárias começam a aparecer também as novas gerações; aquelas que, diziam, não queriam nem saber de ter carro próprio.
Leite, o gerente da Amazon, já tinha desistido de tentar convencer a filha mais velha, Camila, de 21 anos, de que nada se compara à sensação de liberdade de um carro próprio. Mas foi sempre a bordo dos trens de metrô que ela cursou toda a faculdade e no ano passado começou a trabalhar.
A pandemia mudou um pouco esse conceito de compartilhamento. O carro começou a lhe parecer solução segura para o transporte em caso de emergência e para os dias de chuva, quando os preços do Uber disparam.
Na semana passada, Camila concluiu as provas para tirar a carteira de habilitação. “Meu pai ficou mais feliz do que eu”, conta. Mas a jovem administradora confessa que também começa a tomar gosto pela “sensação de poder ir e vir” livremente. Só sente medo por ter que prestar atenção em muitas coisas ao mesmo tempo quando está ao volante. Ela ainda não comprou um carro. Mas o pai já preparou uma lista de ofertas.
A geração de Camila tem, ainda, pela frente, muita coisa para experimentar em termos de mobilidade. A Volks, por exemplo, lançou ontem um serviço de carro por assinatura. Em parceria com a Assobrav, a associação dos revendedores da marca, e a Fleet Solutions, empresa de gestão de frotas do grupo alemão, o serviço oferece aluguel por um ou dois anos. O cliente poderá contratar o serviço on-line ou numa concessionária.
“É uma tendência o consumidor poder escolher entre propriedade ou aluguel. Alguns podem querer ficar com um veículo e depois de um ano dar tchau”, afirma Di Si. A prevalecer o que mostram os resultados de vendas, por enquanto, no Brasil, quem tem acesso ao automóvel está pouco disposto a dar tchau.