Da Folha de S. Paulo
Foto: Freestocks-photos (Pixabay)
Desde o fim de março, o metrô de Xangai determina que os passageiros escaneiem um QR code na janela dos trens ao embarcar. Isso permitirá saber quem compartilhou o mesmo vagão em cada viagem.
Se um deles receber o diagnóstico do novo coronavírus posteriormente, é possível enviar alertas e ordenar quarentena a todos os outros que estiveram naquele vagão no mesmo momento.
A experiência de Xangai mostra que o transporte público após a pandemia poderá se tornar menos anônimo. Hoje já é possível saber em detalhes quantas viagens de apps como Uber cada pessoa fez, aonde foi e em que carro, mas as viagens de ônibus e metrô costumavam garantir mais discrição — embora algumas cidades usem câmeras de reconhecimento facial nas estações.
Essa nova realidade abre caminho para que governos e empresas de transporte façam testes amplos com tecnologias que já existiam, mas eram usadas apenas em pequena escala.
É possível compará-las a situações como trabalho 100% remoto ou compras de supermercado por aplicativos: muita gente aderiu a elas da noite pro dia, mas ainda não se sabe se essas novas práticas vieram para ficar.
Com as cidades praticamente desertas, operadores tiveram de correr para se adaptar. Com isso, linhas de ônibus tiveram os intervalos ampliados, e em cidades como Washington e Buenos Aires, estações foram fechadas, e os metrôs passaram a fazer menos paradas.
A crise reduziu severamente o uso dos transportes. Em Madri, a queda nas viagens chegou a 88%. No Brasil, ficou em torno de 60%.
O próximo passo dessa reorganização é se adaptar aos novos fluxos de deslocamento. “Se a cidade cria um centro de triagem de coronavírus, é preciso fornecer meios para que as pessoas cheguem lá de transporte público”, aponta Sérgio Avelleda, diretor de mobilidade urbana do instituto WRI, com sede em Washington.
Avelleda sugere que as prefeituras podem tentar descobrir quais regiões concentram mais residências de profissionais de saúde, para criar ou reforçar linhas entre esses endereços e os hospitais.
“Poderia, inclusive, usar serviços como táxi e carros de aplicativo para levar essas pessoas, em uma parceria entre serviços privados e públicos”, propõe.
O estudo detalhado das viagens dos passageiros a partir de dados de apps poderá ser usado no futuro próximo para reorganizar os sistemas — e diminuir a ocorrência de cenas como ônibus lotados em uma linha e vazios em outra.
Nos últimos anos, várias empresas fizeram testes de transporte público sob demanda: o passageiro usa um app para pedir uma viagem, o sistema agrupa vários pedidos e cria rotas maleáveis para ir pegando e desembarcando as pessoas pela cidade, sem se prender a itinerários ou horários fixos.
Ônibus e vans rodam conforme a necessidade, evitando circular vazios.
A Moovit, conhecida por um app que informa rotas de ônibus e metrô, pretende acelerar sua atuação nesse tipo de serviço. “Estamos trabalhando com a autoridade de transportes de Israel para implantar essa ferramenta”, diz Yovav Meydad, diretor de marketing e expansão da empresa.
“A tecnologia permite criar pontos virtuais pela cidade, o que reduz a aglomeração nas paradas, e limitar o embarque apenas a passageiros autorizados, como profissionais de serviços essenciais”, detalha.
“O serviço funciona com aplicativos, de modo que um ônibus regular pode ser usado no serviço sob demanda. Basta dar um tablet ou smartphone para o motorista.”
Em Goiânia, o app CityBus, que funciona de modo similar, com vans, ampliou seu serviço para mais bairros nas últimas semanas. Lançado no ano passado, conta com 85 mil usuários cadastrados.
Embora promissor, o modelo ainda não foi testado com milhões de usuários ao mesmo tempo e acabou barrado por alguns governos. A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, impediu um app desse tipo no ano passado poucos dias após seu lançamento por considerar que tratava-se de transporte clandestino.
A adoção do uso de apps para pegar ônibus gera críticas de parte dos empresários de transportes.
Eles temem que ocorra algo similar ao que houve no setor de táxi, que perdeu boa parte da clientela para os serviços via app. Em resposta, taxistas tiveram de baixar preços e passaram a fazer jornadas mais longas.
Antes disso, as empresas precisam lidar com questão mais urgente: a queda de passageiros secou o caixa. Em média, 50% dos gastos são com funcionários, e agora empresas pedem apoio do governo.
“Sem ajuda, o transporte vai acabar parando por inanição. Se transportava 1 milhão por dia e a demanda cai à metade, não tem como fechar as contas”, avalia Marcus Quintella, coordenador da FGV Transportes.
Ele alerta também que pode ser difícil retomar o serviço depois, caso as empresas quebrem.
No Brasil, o setor propôs que o governo compre créditos de viagem, para serem usados depois que a crise passar. Esses passes poderiam ser dados a desempregados, por exemplo. O assunto seguia em debate até a conclusão desta reportagem.
No exterior, o governo britânico assumiu a gestão de algumas ferrovias privadas por alguns meses, para arcar com as contas e evitar a quebra delas.
Nos Estados Unidos, o governo federal liberou um auxílio de US$ 25 bilhões (R$ 130 bilhões). O dinheiro poderá ser usado em adaptações para enfrentar a Covid-19 e pagar os salários dos funcionários que estão em casa.
O país anunciou também US$ 105 bilhões (R$ 548 bilhões) em investimentos em transporte público, a serem usados nos próximos cinco anos, como parte de um pacote para reaquecer a economia.
Se, após a pandemia, mais empresas adotarem o home office como rotina, o setor seguirá perdendo passageiros, uma tendência em muitos países nos últimos anos. E, com menos clientes, as contas ficarão ainda mais apertadas.
“Essa crise abre espaço para o debate sobre a sociedade como um todo pagar pelo transporte público, pois cada passageiro gera economia para a cidade toda. De cada R$ 1 gasto por um motorista para se locomover, a cidade precisa pagar outros R$ 9,20 para pagar pelo asfalto, semáforos, agentes de trânsito etc., e lidar com os efeitos da poluição”, analisa Avelleda.