A derrocada do império Itapemirim e a ofensiva de grupos contra aplicativos

Do Jornal Plural (PR)
Foto: Andreivny Ferreira (UNIBUS RN)

Quando este repórter produziu, em 2002, a reportagem “Oligopólio sobre rodas” – terceira colocada na categoria mídia impressa no Prêmio Confederação Nacional de Transportes (CNT) de Jornalismo daquele ano – o amarelo da Viação Itapemirim era onipresente nas rodoviárias e estradas brasileiras. Eram quase 1,2 mil ônibus da empresa, fora os 300 da Penha, pertencente à época ao mesmo grupo, o qual explorava quase 400 linhas interestaduais.

Hoje, passados 20 anos, e o império capixaba está prestes a desaparecer de vez. Em abril último, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) suspendeu a autorização que a Itapemirim ainda tinha para operar 26 linhas que lhe restavam. Mas, se uma tradicional do ramo sucumbe, outros grupos que já eram fortes duas décadas atrás se consolidaram, inclusive avançando para o ramo de aplicativos para concorrer com as plataformas de transporte por ônibus.

A derrocada da Itapemirim: Se conseguir sobreviver, a Itapemirim vai completar 70 anos de fundação em 2023. Criada em 1953, em Cachoeiro do Itapemirim (ES), pelo empresário Camilo Cola, na década seguinte a empresa se expande para o Norte e Nordeste. Nos anos 1970, adquire a curitibana Nossa Senhora da Penha, alcançando, assim, o Sul. Nos anos 1980, monta sua própria fábrica de ônibus, a Tecnobus; também cria sua de rede de postos de parada e pontos de apoio nas estradas, a Flecha.

A partir de meados dos anos 2000, com a popularização do acesso às viagens de avião, a Itapemirim e outras empresas de linhas de longa distância (como a São Geraldo) passam a perder passageiros para as companhias aéreas. Sintoma de que as coisas não iam bem tem-se em 2007, quando o Grupo Itapemirim se desfaz da Penha, vendida ao Grupo Constantino (o mesmo detentor da Gol Linhas Aéreas). Àquela altura, nem Tecnobus, nem Rede Flecha, entre outros negócios do grupo, funcionavam mais.

Em 2008, a morte de Ignez Cola, mulher de Camilo, provoca na família disputas judiciais pelo patrimônio. Em 2014, o relatório da Comissão Nacional da Verdade apontou contribuição de Camilo Cola à ditadura empresarial-militar (1964-1985). A combinação conjuntura externa mais conflitos internos põe a Itapemirim ladeira abaixo.

A empresa é desmembrada (Itapemirim e Kaissara), depois é vendida em 2015 e entra em recuperação judicial em 2016. Ano passado, em plena pandemia de covid-19 que retraía o mercado de viagens aéreas, o empresário Sidnei Piva, controlador da Itapemirim, lança a Ita – Itapemirim Transportes Aéreos.

Em dezembro último, às vésperas das festas de final de ano, o empresário suspendeu de uma hora para outra as operações da Ita. Milhares de passageiros foram aos aeroportos e encontraram guichês fechados e tiveram suas viagens não realizadas. Esse ápice da crise respinga nas operações rodoviárias, culminando com a suspensão da autorização pela ANTT, em abril deste ano. O mercado aguarda ainda para este semestre os rumos definitivos do outrora império capixaba das rodoviárias brasileiras.

O fim da São Geraldo: Outra gigante também não resistiu à concorrência com o setor aéreo nos trajetos de longa distância: a São Geraldo. Vinte anos atrás, a viação era a segunda maior em frota no mercado interestadual, com quase 800 ônibus, e que operava a segunda maior quantidade de linhas federais (mais de 200). Dividia com a Itapemirim a paisagem nas rodoviárias e estradas do Brasil, de norte a sul.

É contemporânea da empresa capixaba – nasceu em 1949, em Minas Gerais, no município de Caratinga. Cresceu na medida em que a malha rodoviária no país se ampliava. Também absorveu boa parte dos passageiros do fluxo migratório Nordeste-Sudeste. Em 2003, foi incorporada por outro grande grupo, então concorrente: o mineiro Gontijo. Até 2015, o grupo Gontijo manteve a marca São Geraldo, descontinuando-a gradativamente a partir de então.

Consolidação: Com a operação de compra da São Geraldo, a Gontijo, que no início dos anos 2000 já figurava entre os cinco maiores viações do pais, consolidou-se com um dos grandes grupos do setor. Outro que estava em ascensão, também se firmou nos últimos anos: o Grupo Constantino (atualmente denominado Grupo Comporte).

O conglomerado já se destacava pela sua atuação no segmento de transporte urbano, com forte presença em grandes e médias cidades do Sudeste, Centro-Oeste e Sul, quando em 2001 fundou a Gol Linhas Aéreas. Ao adquirir, em 2007, a Penha, demarcou definitivamente território nas estradas brasileiras. Hoje, o Comporte controla viações tradicionais como Piracicabana, Empresa Cruz, Princesa do Norte, Expresso Maringá, Caxiense, Itamarati, Expresso Prata, Pássaro Marrom, entre outras.

Também com forte presença no segmento urbano, em especial no Rio de Janeiro e em estados do Norte e Nordeste, a Expresso Guanabara se firmou nos últimos 20 anos entre os mega grupos do mercado interestadual. Dois movimentos, nesse período, foram decisivos: a compra, em 2003, da União Transporte Interestadual de Luxo (Util) e, em 2009, da Real Expresso. Com estas, e com a própria Expresso Guanabara, o grupo alcança hoje rotas nas cinco regiões geográficas brasileiras.

As superpoderosas: Com todos esses movimentos, os grupos Gontijo, Comporte/Constantino e Guanabara se colocaram no rol das corporações que, 20 anos atrás, já figuravam como superpoderosas no mercado de transporte rodoviário interestadual de passageiros, e que seguem em ascensão. Casos do Grupo JCA (Auto Viação 1001, Cometa, Catarinense, entre outras); Águia Branca (Águia Branca, Expresso Brasileiro, Salutaris) e Eucatur.

Grupos esses que, por sinal, estão criando braços para competir diretamente com os aplicativos de ônibus, como Buser, 4Bus, Gipsyy, FlixBus, BusUp, Ubus e Busbud. O JCA, por exemplo, colocou no mercado o Wemobi; o Águia Branca, lançou o Águia Flex. Já os grupos Guanabara e Brasil Sul/Viação Garcia firmaram acordos com, respectivamente, as plataformas Gipsyy (de Portugal) e Embarca.

Na prática, por meio dessas marcas os grupos tradicionais ofertam trechos já servidos por suas empresas convencionais, porém mediante venda de passagens exclusivamente pela internet, e seguindo a lógica do fretamento. Oferecem tarifas mais baixas, em patamares semelhantes aos dos aplicativos, neutralizando, assim, a concorrência em seus trechos de atuação.

A disputa por passageiros entre os grupos tradicionais e os aplicativos de fretamento por ônibus vem se dando também nas narrativas. A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que tem a Buser e a FlixBus entre as associadas, e a Associação Brasileira de Empresas Brasileiras de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati) com regularidade emitem notas defendendo seus negócios e criticando incoerências da outra parte.

“A dura reação [aos aplicativos] das empresas tradicionais das rodoviárias é natural, pois temem perder seus privilégios e mercado quase cativo”, diz a Amobitec em nota disponível em seu site. “Há que diferenciar os aplicativos de ônibus que operam com empresas autorizadas ao transporte regular de passageiros dos aplicativos que operam com empresas não autorizadas a esse serviço”, aponta, a esta reportagem, a porta-voz da Abrati, Letícia Pineschi, argumentando que as novas plataformas não dispõem da devida autorização da ANTT para a oferta de linhas regulares.

A queda de braço entre as partes e a ANTT por ora sem bater martelo em torno da questão confirmam que o transporte rodoviário de passageiros ainda carece de ser tratado como um serviço – ou, nas palavras do mestre em Engenharia de Transportes Felipe Freire da Costa, “um sistema” – e continua a ser conduzido como mercados a serem disputados.

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