Da Folha de S. Paulo
Foto: Adriano Soares (Grupo Mirante / Via G1 MA)
Já passa das 7h e os pontos de ônibus da avenida dos Portugueses continuam lotados. A São Luís (MA) que acordou no fim da madrugada, à margem esquerda do rio Bacanga, ainda tenta embarcar para o trabalho em ônibus velhos, cheios, escassos e com intervalos irregulares. Eles cruzam bairros como Anjo da Guarda, Vila Embratel, Gapara e Sá Viana e se espalham pela cidade.
Sobre o asfalto destruído, veículos particulares e mototáxis passam em frente aos pontos disputando os passageiros abandonados pelo transporte oficial. É a resposta “alternativa” —ou clandestina, mesmo— aos buracos deixados pela administração pública no atendimento à população.
O cenário encontrado pela Folha é desolador. “Você está vendo aqui. Duas horas de relógio perdidas. Isso quando o ônibus não fica no prego [quebrado], porque a maioria é velho. A gente sofre toda hora e todo dia”, diz Marcelina Soares Lindoso, que, na semana retrasada, tentava no início da manhã deixar a Vila Embratel para chegar a um hospital, onde renderia o acompanhante de uma pessoa internada.
Marcelina, 53, é conselheira de saúde nessa região periférica de São Luís, com cerca de 250 mil habitantes, quase um quarto da população total. Principal ligação desses bairros com o centro da cidade, a avenida dos Portugueses, onde ela aguardava o ônibus, é identificada como uma rodovia federal.
Com sinalização e pavimentação precárias, a via recebe milhares de carros diariamente e mostra ainda como barreiras burocráticas, que retalham avenidas entre os entes da federação, também impedem a população de se deslocar melhor.
O Índice Folha de Mobilidade Urbana detecta que São Luís é, de fato, uma das capitais com muitas dificuldades para atingir a mobilidade sustentável num prazo razoável. O resultado tem ressalvas, porque existe um apagão de dados que impede comparações detalhadas.
O que dá cara aos ônibus de São Luís é uma frase que brota com frequência e resignação da boca de moradores: “chove mais dentro do que fora”. A lataria carcomida de parte dos coletivos é acompanhada das portas e janelas que não fecham completamente.
Tantos problemas jogam passageiros diante da busca por alternativa. O transporte oficial custa R$ 3,90. O clandestino, R$ 5. A mão direita do motorista no volante e a esquerda para fora do carro, com indicador levantado, mostra que se trata de um “carrinho” passando pelo ponto. E eles formam filas diante dos ônibus, numa disputa frenética por quem cansou de esperar.
O “carrinho” pode ser desde um veículo dos anos 1990 até outro bem mais novo, com prestações vigentes. Leva quantos passageiros couber —nem sempre com conforto—, e mais rapidamente que os ônibus. A frequência é grande em regiões como o Anel Viário. A prefeitura diz que fiscaliza essa irregularidade. Durante a reportagem, não foram vistos fiscais ou abordagens.
“Alguns [carrinhos] são confortáveis, mas a metade já está quebrada, porque às vezes batem, com a pressa de um chegar na frente do outro. É muita competição e dá acidente no meio do caminho”, diz o auxiliar de serviços gerais Ribamar Santos, 41.
Além dos “carrinhos”, que se tornaram também uma fonte de renda para a população desempregada e empobrecida, a capital conta com mototáxis —são mil oficialmente cadastrados. Sob a regulação do governo estadual, ainda há ônibus semiurbanos, parte também envelhecida, para localidades da região metropolitana. De um aterro enlameado, partem mais coletivos intermunicipais para cidades da baixada. Isso é tudo e não dá conta.
A infraestrutura também é precária. Um terminal de passagem no centro da cidade, o Fonte do Bispo, é usado sem qualquer condição de segurança pela população. Quem espera diz que ele chegou a ser entregue em algum momento, mas ainda passa por reformas. O pavimento é um catálogo de poças de lama de diversas profundidades.
O Fonte do Bispo serve a tudo, de ônibus municipais a atalho para veículos particulares. Passageiros se aglomeram na ponta da plataforma para descobrir qual coletivo irá passar e correm atrás para pegar a condução “no laço”. “A situação é precária. E, se perco o ônibus, tenho de esperar duas horas até passar outro”, afirma a cuidadora de idosos Lena Martins, 41, que toma o Rio dos Cachorros diariamente.
Além de receber boa parte dos trabalhadores que fazem integração para outras partes da cidade, outro terminal, o da Praia Grande é o mais próximo do centro histórico de São Luís —fica quase em frente. Também com alguma precariedade. A despeito da riqueza cultural, da história e da receptividade do povo maranhense, o turista que vai ao banheiro da parada se depara com situação nada acolhedora. Antigas latrinas (buracos no chão, para serem usados de cócoras) no lugar de privadas. Para lavar a mão, uma pia pequena com uma única torneira.
Insegurança: Os problemas se somam e tornam difícil tanto a vida de passageiros quanto de quem trabalha no transporte público. O medo de ser assaltado dentro dos coletivos é grande. Em meados de maio, um motorista foi esfaqueado quando tentava conter um ladrão. Diante do clima de insegurança, a Polícia Militar passou a fazer blitze nas principais avenidas, revistando passageiros —o próprio repórter esteve um ônibus abordado.
“A gente está vulnerável a tudo, sente-se desprotegida”, diz a motorista Delciane Sales, 42, que relata ter sido assaltada várias vezes e vítima de um sequestro-relâmpago, quando ficou refém por cerca de 40 minutos. “Eles me levaram com ônibus, passageiro e tudo. É uma sensação horrível, desesperadora. Foi na Ponta da Areia, que é um bairro nobre, onde você imagina que tem segurança, no entanto…”
Falta segurança também para quem teme ser atropelado em largas avenidas sem estrutura para aqueles que caminham ou pedalam. A lógica é de verdadeiras rodovias urbanas.
A rede cicloviária é desconectada e insuficiente —só 2,4% da população vive a 300 metros ou menos de uma ciclovia, segundo dados do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento).
Na orla da avenida Litorânea, chama-se de ciclovia uma calçada compartilhada com pedestres, onde não se vê sinalização clara.
Situação diferente do bairro da Península, onde mora parte da elite maranhense. Por lá, a reportagem encontrou a faixa exclusiva para bicicletas bem desenhada sobre o asfalto impecável, com funcionários da prefeitura passando cal na guia do canteiro central.
O gesseiro Iderlan de Jesus Costa, 35, não encontra nada disso no caminho de 12 km entre Sá Viana e Calhau. É no meio dos carros que pedala por agilidade e economia. E já quase perdeu a vida assim. “Tenho em casa uma bicicleta quebrada. O ônibus me prensou no canto. [A bicicleta] Não prestou para mais nada e nunca fui pago por isso.”
Doutora em engenharia urbana e professora da UFMA (Universidade Federal do Maranhão), Ana Beatriz Pereira Segadilha dos Santos listou diversos problemas que serviram de base para a apuração da reportagem e afirmou que a falta de empenho do poder público para resolver as questões é um grande entrave.
“Um dos princípios básicos é dar mobilidade para a população. Falta a parceria, com estudos, ir até o local para ver onde o pessoal está lascado, onde mais precisa. Precisa ter uma área destinada à pesquisa”, afirma ela.
Ana Beatriz conta que as grandes avenidas são barreiras urbanas para pedestres e ciclistas, mas abrem também a possibilidade para que a prefeitura melhore o transporte público com a criação de BRTs (corredores exclusivos para ônibus, com possibilidade de ultrapassagem e estações no lugar dos pontos). Em suma, literalmente, tem espaço para melhorar. “É uma cidade muito espalhada, com ônibus que demoram para passar e muito tempo de viagem.”
A Prefeitura de São Luís diz que a frota tem idade limite de dez anos, com idade média de cinco, e que houve diminuição no número de veículos, de 920 para 708 em operação. Fala ainda que fiscaliza o serviço.
“A gente vem passando por uma crise nacional no transporte público”, afirma o secretário municipal de Trânsito e Transportes, Diego Baluz. “É uma questão muito desafiadora para todos nós gestores de município, que é sustentar os contratos, buscar um equilíbrio de maneira que venham a operar de forma satisfatória.”
A prefeitura diz que, por edital, a manutenção dos terminais é de responsabilidade das empresas de transporte e que fiscaliza essa cláusula. E acrescenta que o Fonte do Bispo está em fase final de readequação das obras deixadas pela gestão anterior.
Baluz afirma que pretende dobrar ou até triplicar a infraestrutura cicloviária e que a atual administração mantém diálogo com especialistas.
O governo estadual diz que as polícias Civil e Militar realizam ações contra a criminalidade, além de operações integradas com outros órgãos. Sobre o transporte semiurbano, diz que faz vistorias. Com relação à avenida Litorânea, também ela uma rodovia estadual, diz que fará a manutenção da sinalização —e que calçada e ciclovia são separadas.
O governo federal, por meio do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) afirma ter contrato de manutenção vigente em todo o trecho e que realiza reparos regularmente na avenida dos Portugueses, dizendo que já solicitou a transferência do segmento para a prefeitura.