Do AutoEsporte
Foto: André Schaun
Eis que retomei o contato com um velho conhecido dos anos de faculdade: um articulado Mercedes parecido com o que me esperava na porta da escola, lá na linha 8700-10 “Terminal Campo Limpo – Praça Ramos de Azevedo”.
Entrei no “coletivo”, mas dessa vez não precisei pagar R$ 4,40 (preço da passagem em São Paulo), nem girar a catraca, nem viajei em pé.
Assumi o volante do Mercedes com 23 metros com carroceria da Caio que me deu carona durante todo o meu curso. Na pista de testes da Mercedes-Benz, em Iracemápolis (SP), meu objetivo era dirigir e (tentar) manobrar o O 500 UDA 3736 – o maior superarticulado da marca alemã (e isso em todo o mundo).
Como não tenho CNH da categoria E, meu passeio ficou restrito à pista, que é repleta de retas, curvas e obstáculos que simulam situações do cotidiano. Para ser motorista de uma empresa de transporte urbano, além da habilitação, eu ainda precisaria de um curso específico com duração de 50 horas.
Nosso primeiro contato começou com uma deferência: o ônibus se inclinou, ficando mais próximo do chão, facilitando o embarque dos passageiros. Por meio de uma válvula o motorista aciona o sistema de “ajoelhamento”. Na prática, o comando alivia a pressão da suspensão pneumática, rebaixando a carroceria em sete centímetros, junto com aquele som sibilante característico de ar pressurizado escapando para a atmosfera. Na hora lembrei da faculdade.
A unidade que dirigi estava pronta para rodar em São Paulo, com catraca, sistema de bilhetagem compatível com o Bilhete Único paulista e câmeras de vigilância. A faixa azul do ônibus das fotos também denuncia o uso – ele vai rodar na zona sul da cidade, já que os distritos estão divididos por cores.
Resolvi testar o botão que apertei mais do que campainha em toda a vida: aquele que avisa ao motorista que alguém quer descer no próximo ponto. Tudo prontinho para o uso. Era hora de assumir a direção.
Sentei no banco do motorista e pensei: conforto definitivamente não é a prioridade. Um ônibus rodoviário tem muito mais comodidade que o modelo urbano que dirigi. Nada de ajuste pneumático. Para levantar e descer o assento é preciso girar uma espécie de registro bem simples. Além disso, o banco é desconfortável — a espuma é dura demais.
O volante não é multifuncional, como nos ônibus rodoviários. O item é oferecido, mas como acessório à parte. Em comparação com os modelos estradeiros, o acabamento também é muito diferente. As peças do painel são de plástico duro, rústicas, e não filtram bem os ruídos que vêm do motor. Até as tolerâncias dos encaixes parecem mais permissivas.
Com o banco ajustado, regulo os cinco retrovisores – três são internos, voltados para os passageiros. De novo, nada de ajuste elétrico: é necessário levantar do assento e regular de forma manual. Vale dizer: todos esses itens deixariam o ônibus urbano ainda mais caro. O O 500 UDA custa a partir de R$ 1 milhão, considerando só o chassi, e outros R$ 800 mil para a carroceria.
Não é a Mercedes que se responsabiliza pelo encarroçamento, feito por empresas, parceiras da fábrica. Neste aqui o modelo é o Millenium BRT. A montadora produz a base do veículo conforme as características da cidade onde irá rodar. Mas porque esse ônibus é tão caro? A tecnologia do 0500 UDA não pode ser vista a olho nu.
A Mercedes revolucionou o transporte de passageiros no Brasil quando criou esse tipo de ônibus. Até 2012, eram os biarticulados (com duas articulações) que faziam sucesso nos sistemas de transporte coletivo urbano. Porém, a montadora criou algo mais econômico para o BRT (Bus Rapid Transit), que possui corredores exclusivos veículos de grandes proporções. A inovação foi até exportada para a Europa, mas o foco da produção é o Brasil, mais dependente desse tipo de veículo.
O superarticulado da Mercedes tem apenas uma articulação e diversas vantagens, o que fez com que os ônibus de sanfona dupla sumissem das ruas. Os modelos mais novos são mais fáceis de dirigir e de manobrar, justamente pelo fato de terem apenas uma articulação.
Aliás, esse componente é uma das partes mais caras de um ônibus desse tipo. Além de ser importada, a peça sofre grande desgaste e tem que passar por manutenção frequente. Claro, esse não é um ônibus próprio para circular em ruas apertadas, mas diferentemente do biarticulado, esse veículo consegue circular em mais avenidas da cidade, exatamente pela “facilidade” de condução.
O ônibus-sanfona da Mercedes também tem como diferencial os quatro eixos, sendo o último direcional, o que possibilita a instalação de carrocerias de até 23 metros. Um sensor transmite o ângulo de esterçamento para uma central eletrônica, que movimenta as rodas traseiras.
Em outras palavras, o último eixo não tem conexão direta com o volante. Ele atua conforme a movimentação da articulação central – o que garante maior estabilidade, reduz o consumo de pneus e facilita manobras.
O motor é o mesmo utilizado no caminhão Actros: seis-cilindros 12.0 de 354 cv e 163 kgfm de torque. O câmbio é da Voith e tem 4 marchas, mas há uma opção da ZF de 6 relações. Toda a linha O 500 tem motorização traseira, o que melhora até a vida do motorista. Como o motor fica longe da cabine, não gera tanto ruído ou vibração.
Outra vantagem é que o eixo motriz não é o dianteiro, mas o traseiro. Na rua, ao “empurrar” o ônibus, essa configuração garante maior estabilidade direcional, segundo a Mercedes. A manutenção também é beneficiada, já que esta posição facilita o acesso ao motor.
Vale dizer que esse motor é usado em articulados de 18 metros. Ou seja: o O 500 UDA consegue levar cinco metros a mais de carroceria, isso porque ele não é tão pesado quanto um ônibus de duas articulações. Os ônibus com duas sanfonas possuem até 30 metros e mais de 45.000 kg de peso bruto total. Mais peso, maior o consumo de combustível e gastos com manutenção
Há outro ponto positivo: apesar de ser menor que um biarticulado, o superarticulado consegue levar quase o mesmo número de passageiros com menos custos para a empresa e mais facilidades para o motorista. O ônibus da Mercedes com piso alto é capaz de carregar 220 pessoas, 170 com piso baixo. Já o biarticulado da Volvo suporta 240. A seu favor, o superarticulado também tem apenas dois pneus a mais que o articulado, já o biarticulado tem quatro — mais pneus, custo operacional mais alto.
Ao volante
Logo nos primeiros metros, percebi que além do barulho do motor ser muito mais baixo do que eu imaginava, a direção hidráulica é muito mais leve do que esperava. A grande dificuldade no início foi medir a força para mexer no volante e para pisar no freio, que é extremamente sensível, outra coisa que eu não imaginava.
O 0 500 tem o conhecido Retarder, uma espécie de freio auxiliar, com acionamento pelo próprio pedal — basta colocar pouca pressão na hora da frenagem. Esse sistema de freio hidrodinâmico funciona como um conversor de torque, atuando em conjunto com o freio-motor e o freio de serviço do ônibus.
Na prática, o motorista não precisa pisar forte no pedal do freio para fazer frenagens comuns. Quando o motorista aciona o retarder, o sistema hidráulico começa a controlar o fluxo de óleo entre os rotores e estatores. As rotações vão sendo reduzidas e o veículo começa a parar. Isso reduz os gastos com pastilhas, por exemplo.
Por estar vazio, qualquer mudança suave no volante fazia o segundo carro mexer mais do que eu havia programado. Se me pedissem para listar os itens mais importantes na hora de dirigir um ônibus, os retrovisores estariam nas primeiras posições. Eu também conseguia perceber isso observando as poucas pessoas que estavam dentro do ônibus e precisavam se segurar para se manter em pé. Nesse momento voltei a pensar na época de estudante: me arrependi de reclamar mentalmente sobre as frenagens bruscas de alguns motoristas. De qualquer forma, essa sensação de falta de controle também é passageira (sem trocadilhos aqui). Bastou dez minutos para me acostumar com a dinâmica e com o trajeto.
O acelerador por sua vez tem uma performance totalmente diferente: demora para responder, mesmo quando cravo o pé no acelerador. Esse, claro, não é o objetivo desse tipo de veículo. A velocidade máxima inclusive é limitada a 60 km/h. Mas a pista fechada me dava liberdade para esse tipo de teste.
Além de controlar a força para girar o volante e o pé para frear, é necessária uma readaptação de referências na hora de fazer curvas, a impressão é de estar invadindo a faixa da esquerda o tempo todo. Também é preciso ter uma faixa livre bem mais larga e fazer curvas mais abertas. Outra sensação estranha: no começo, a velocidade parece muito maior, mesmo a 30 km/h, talvez pelo peso e pelo tamanho do ônibus.
Hora de estacionar. Vale dizer que esse tipo de ônibus não é feito para fazer manobras. Até as garagens onde eles ficam são abertas para que os motoristas nem precisem utilizar a ré. No carro, basta ir virando o volante para o mesmo sentido que você quer jogar a traseira do carro. Em um ônibus articulado, é preciso fazer manobras diferentes, isso porque o quatro eixo direcional não responde aos comandos do volante e sim da articulação. Em algumas situações específicas é possível bloquear o movimento do eixo traseiro.
Numa pista gigante, eu só consegui colocar o ônibus “na vaga” na quarta tentativa e com muita orientação e tecnologia. O 0 500 UDA tem um sistema que libera mais a articulação para facilitar pequenas manobras. A partir de 40 km/h, o mecanismo também muda o comportamento — fica mais rígido para dar mais estabilidade para a carroceria.
No final do dia, meu desempenho como motorista foi impresso com os dados do tacógrafo. Essa “caixa preta” obrigatória dedura o que aconteceu com o ônibus durante seu uso. Felizmente tudo ocorreu bem.