Artigo: Ônibus elétricos – Inovações tecnológicas demandam fomento, experiência e tempo

Da ANTP
Por Luiz Carlos Néspoli*
Foto: Divulgação (Caio Induscar)

No início da década de 1970, uma densa espuma branca pairava sobre o rio Tietê, na Grande São Paulo, atribuindo-se a culpa ao detergente não biodegradável. Causa exclusiva ou não da espuma, o fato é que este fato suscitou um grande debate nacional sobre o desenvolvimento do produto ambientalmente mais adequado. Em 1975, o Governo Federal julgava inevitável a saída do detergente não biodegradável do mercado brasileiro, e timidamente iniciativas industriais deram inicio às primeiras produções no país. Quase 15 anos depois, em 1985, é sancionada a Lei 7.365 proibindo a fabricação e a importação de detergentes poluidores, e ainda assim levou outros tantos anos para a eliminação completa do produto poluente.

Não era só essa a questão ambiental que se discutia no país nos anos 1970. Como não lembrar o nascimento de crianças com anencefalia na cidade de Cubatão causada pela poluição química produzida pelas fábricas daquele polo industrial. Como esquecer a “Operação Branca” iniciada pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – CETESB, e os seus 100 automóveis procurando chaminés expelindo fumaça. O país vivia o nascimento de uma consciência ecológica importante. Mas não só as fabricas eram as vilãs. Também os automóveis, os quais já eram considerados um dos maiores poluidores urbanos.

E é nesse ambiente (sem trocadilhos) que o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA institui, em 1986, o Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores – PROCONVE, com o objetivo de reduzir os níveis de emissão de poluentes por veículos automotores para atendimento aos padrões de qualidade do ar e de promover o desenvolvimento tecnológico nacional na engenharia automobilística, em métodos e equipamentos para ensaios e medições da emissão de poluentes e nas características técnicas dos combustíveis líquidos.

Em outubro de 1988, no Salão do Automóvel, é anunciado o lançamento pela indústria dos carros de luxo (luxo para época) com injeção eletrônica. Embora uma evolução tecnológica destinada a melhor atender às novas normas do CONAMA, a injeção eletrônica virou objeto de marketing. Era chique e moderno ter um carro com o símbolo “i.e”. Hoje, está presente em qualquer modelo de automóvel e não é nem notado pelo consumidor.

Em 2016, 30 anos após a Resolução do CONAMA, as sucessivas normas e medidas de alteração na indústria, em veículos ou combustível, conquistaram um feito notável com automóveis sendo produzidos com 95% a menos da emissão dos poluentes CO (monóxido de carbono), HC (hidrocarbonetos) e NOx (óxido nitroso) em veículos leves. Da mesma forma, essa evolução também foi procedida nos veículos movidos a diesel.

Atualmente, por exemplo, substituição de um ônibus a diesel de padrão Euro 3 por um do tipo Euro 5 pode reduzir algo como 83,3% de material particulado, 68,8% de óxidos de Nitrogênio (NOx), 84,9% de hidrocarbonetos (HC), 72,3% de Monóxido de Carbono (CO), gases estes de grande impacto na poluição de efeito local e que causa graves problemas de saúde, e redução de 7,5% de dióxido de Carbono (C02), gás de efeito estufa e danoso para clima global, reduções que aumentam se a troca for pelo tipo Euro 6.

Os exemplos ilustrativos, dentre tantos outros, indicam que inovações tecnológicas são relevantes, senão indispensáveis, quando se busca a melhoria da qualidade de vida, sobretudo a qualidade ambiental. Mas também indicam que as alterações necessárias exigem um longo período para o processo de maturação, de maneira a permitir que todos os fatores de produção, e aqueles relacionados com os comportamentos de consumo, se amoldem aos novos imperativos.

Eis que estamos novamente no limiar de uma nova inovação tecnológica de grande relevância e de grande impacto ambiental na mobilidade urbana, qual seja, o uso de veículos elétricos, em especial, de ônibus elétricos. De fato, o uso da energia elétrica, sem considerar eventuais emissões decorrentes de sua produção, mas apenas no que tange ao seu consumo na operação do transporte, pode resultar na eliminação total de poluentes de efeito local e de efeito estufa.

No Brasil, o ônibus responde por 86% de todas as viagens de transporte público. Para tanto, a frota utilizada é de cerca de 100 mil veículos dos mais variados modelos, essencialmente veículos a diesel, sendo que milhares deles com tecnologia ainda fora de padrões de emissão atuais. Em estudo recente da NTU, constatou-se que a idade média da frota nacional é da ordem de 8 anos, que chega a ser de 11, 12 e de até 13 anos em algumas capitais brasileiras, requerendo uma política nacional de rejuvenescimento da frota, com a substituição de cerca de 30 mil veículos para que a idade média da frota nacional caia para 5 anos.

O Brasil é um grande mercado de ônibus e a indústria nacional também é uma grande exportadora deste tipo de veículo, sobretudo para a América Latina. Esse mercado nacional é, por várias razões, muito atrativo para a introdução do ônibus elétrico nos sistemas de transporte público. Ao mesmo tempo, as vantagens ambientais da eletromobilidade e a conotação de modernismo vêm estimulando o interesse dos prefeitos das cidades brasileiras. Há quase um imperativo de se implantar já, ou o mais logo possível, o ônibus elétrico nas cidades brasileiras.

Ao contrário dos exemplos ilustrativos citados no início do texto, em que o mercado se ajusta ao longo do tempo entre fornecedores e consumidores, a introdução do ônibus elétrico implica em alterações significativas nas condições contratuais entre concedentes e concessionários, com consequentes reflexos na tarifa pública paga pelo usuário e também no montante de subsídios públicos onde eles são aplicados.

Por esta razão, a complexidade de implantação do ônibus elétrico requer tempo para que se alcance um grau de maturidade maior em toda a cadeia de produção da prestação do serviço. É necessário compreender e equacionar, dentre outros fatores:

· O estagio de desenvolvimento da fabricação do veículo e da bateria;
· Os respectivos preços de aquisição;
· O conhecimento do desempenho, da autonomia, da vida útil e dos processos de recarga da bateria;
· A velocidade média de circulação que promove a regeneração de energia;
· As adaptações nas garagens para o fornecimento da energia elétrica; e
· O impacto da flexibilidade preços da energia elétrica: horários, locais e sazonalidade.

São fatores que incidem diretamente na formulação de modelos sustentáveis de negócio e que neste momento ainda causam incertezas nos operadores, na indústria nacional e nos poderes concedentes do transporte público coletivo.

O preço dos insumos, ao lado da falta de escala na fabricação, são hoje ainda os responsáveis pelo alto preço do ônibus elétrico no país, que pode chegar até cinco vezes o valor de um ônibus similar a diesel. Ao mesmo tempo, observam-se fabricantes de outros países com interesse no Brasil para fornecimento de ônibus a preços inferiores aos protótipos nacionais, o que pode impactar de forma expressiva a indústria nacional, que é uma importante geradora de empregos, de renda e de impostos.

A pouca experiência da prestação de serviços de transporte público por ônibus elétrico em algumas cidades brasileiras, por outro lado, ainda não permite aos operadores conhecer de maneira segura o desempenho dos veículos. Também até o momento essas experiências não propiciaram a formação de competências técnicas necessárias para que os operadores possam romper o “cordão umbilical” com o suporte técnico dos fabricantes, os quais ainda atuam nos bastidores numa espécie de “atendimento de pós venda”. Sem o domínio dos instrumentos de gestão de frota, incerteza e desconfiança permeiam o setor.

Se encher o tanque dos ônibus com óleo diesel leva minutos, a recarga de energia na bateria leva até 6 horas de duração, o que significa a necessidade de imobilização do veículo na garagem por um longo período, apenas para “encher o tanque”. Há propostas em algumas cidades brasileiras de uma substituição total da frota operante por uso exclusivo de ônibus elétricos, o que significa adquirir uma frota reserva a um custo elevado, apenas para mantê-la imobilizada para “encher o tanque”. Há, por outro lado, tecnologia para suprimento de carga de oportunidade, com possibilidade de cargas rápidas ao longo do itinerário ou em terminais de ônibus, mas sem experiência suficiente que dê segurança neste processo. Mesmo assim, esse modelo não substitui a necessidade da carga lenta nas garagens e ainda exige investimento do poder público para sua implantação.

Deve-se levar em conta também que imobilizar vários ônibus ao mesmo tempo para recarga de bateria requer uma quantidade de energia elétrica, que pode exigir a construção de uma subestação própria na garagem e, por razão de normas de segurança, também cobertura do local de recarga e maior espaçamento entre os veículos estacionados. Em outras palavras, há investimentos significativos nas adaptações das garagens.

A regeneração de energia é um fator positivo no ônibus elétrico, economizando a carga da bateria e aumentando sua autonomia em operação. No entanto, ela é dependente da velocidade do veículo. Abaixo de 20 km/h, já se constatou que não há regeneração. Assim, disponibilizar ônibus elétricos em itinerários de vias com tráfego congestionado, com as conhecidas velocidades médias de 13 a 14 km/h, não trará os benefícios esperados de regeneração. Deve-se ressaltar, sobretudo, que o preço de fornecimento da energia elétrica hoje no mercado é flexível e depende do horário do dia, da localidade e da época de consumo, sendo ainda não conhecido o impacto que pode causar no custo operacional.

Ao lado destes aspectos, acrescente-se a existência de diferentes fornecedores, com diferentes índices de eficiência e desempenho. Com tudo isso, há um número enorme de variáveis na composição dos custos da “produção dos serviços de transporte público por ônibus elétricos”. Em termos matemáticos, poderia se dizer que há um elevado “grau de liberdade” na formulação do plano de negócio.

Destarte tudo isso, não se pode negar que a inovação tecnológica do ônibus elétrico deve ser bem vinda e que os obstáculos para sua implementação podem ser removidos. É necessário, no entanto, que os elementos constitutivos tornem o “produto” mais confiável quanto a sua produtividade, eficiência e preço do ponto de vista do operador e do poder concedente. Se é necessária maior experimentação para sairmos da prototipagem (de veículos e de insumos) para um produto escalável, deve-se dar garantias aos operadores para que participem do processo de inovação e, ao mesmo tempo, estímulo à indústria nacional para produzir ônibus com menor custo e competir com concorrentes estrangeiros e, ainda, manter seu mercado de exportação, o que de resto é bom para o país.

Finalmente, é imperativo um programa nacional de transição energética para o transporte público sob a responsabilidade e coordenação do Governo Federal, que apoie os experimentos e crie linhas de financiamento e garantias de aquisição, pelo menos durante o período necessário para desenvolvimento do conhecimento e de maturidade deste novo produto.

Pelas razões expostas, é necessário reconhecer que estamos no limiar da introdução de uma inovação que é inevitável (e desejável), mas que requer, para seu desenvolvimento, um esforço convergente dos governos, indústria e operadores, e cuja implementação não pode ser financiada pelo usuário. A política de redução de gases de efeito local e de efeito estufa é uma questão de interesse nacional, da qual se beneficia toda a sociedade e ainda coloca o país em ótima posição perante os compromissos internacionais assumidos. Por óbvio, é injusto que deva ser paga pelo usuário do transporte público, sobretudo porque ele é oriundo do estrato mais pobre da população.

* Luiz Carlos Néspoli é superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).

** O texto que você acabou de ler não reflete, necessariamente, a opinião do UNIBUS RN, sendo de total responsabilidade do seu autor.

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