Do Jornal O Estado de S. Paulo
Foto: Arquivo (Marcopolo / Via Secco Comunicação)
Bandeira do Movimento Passe Livre (MPL), que acendeu o pavio das manifestações de junho de 2013, a tarifa zero é hoje uma realidade em 72 cidades do País. Ao todo, 3,283 milhões de brasileiros não desembolsam um tostão quando usam o sistema de transporte público. O mapa da adoção da política que torna esse serviço gratuito, assim como saúde, educação e segurança, inclui municípios de 12 Estados. E, ao que tudo indica, o debate sobre a proposta deve invadir as campanhas eleitorais de 2024.
Levantamento feito pela Coordenadoria de Mobilidade Urbana do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) mostra que São Paulo lidera o ranking dos Estados, com 23 cidades que oferecem a gratuidade à população, seguido por Minas, com 18, e Paraná, com 11. “Seis capitais estão estudando a adoção do sistema”, afirmou o geógrafo Rafael Calábria, coordenador no Idec. São elas: São Paulo, Fortaleza, Goiânia, Cuiabá, Brasília e Palmas.
O movimento em direção à tarifa zero se acentuou com a pandemia de covid-19. Foi depois que o coronavírus se espalhou pelo mundo que 42 prefeitos decidiram reorganizar o transporte público em suas cidades. Esse foi o caso de Mariana (MG), Paranaguá (PR), Assis (SP) e do mais populoso de todos os municípios a adotar o sistema: Caucaia, na Grande Fortaleza, no Ceará. Desde 2021, seus 368,9 mil habitantes se locomovem com tarifa zero.
A maioria dos políticos e dos especialistas em transportes ouvidos pelo Estadão diz acreditar que a discussão sobre essa política pública estará em destaque na próxima campanha eleitoral, em 2024. O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), já encomendou um estudo para a adoção da medida. Para seus adversários, esta pode ser a bandeira que Nunes precisará para se reeleger. “O estudo que eu pedi à SPTrans deve estar pronto ainda neste ano”, contou o prefeito.
Nunes explica que a ideia de adotar a tarifa zero em São Paulo também nasceu durante a pandemia por causa da diminuição do número de passageiros no transporte público da cidade – de 9 milhões por dia em 2019 para 7 milhões em 2023. Outro fator que pesou foi o aumento do trânsito após a volta à normalidade, em 2022. “Pensamos em um plano de retomada econômica que passava pela redução de impostos. E uma das medidas era deixar a tarifa congelada”, disse Nunes.
Subsídio
Atualmente, o preço da passagem é R$ 4,40 e não sobe há três anos. Em 2022, o sistema de transporte público custou R$ 10,3 bilhões para a cidade, dos quais R$ 5,1 bilhões foram arrecadados com tarifa e o restante foi subsidiado pela Prefeitura. “A tarifa devia ser R$ 7,20. Começamos a levantar as cidades que tinham tarifa zero e vimos que todas elas demonstravam um ganho econômico do comércio e de empregos”, disse Nunes.
Para que o modelo seja adotado em São Paulo, o Município teria de encontrar R$ 5,2 bilhões para custear o sistema. Nunes tem a conta na ponta da língua. Pelos seus cálculos, seria possível a cidade obter R$ 2,8 bilhões, caso a lei federal seja mudada, destinando o dinheiro do vale-transporte para o Fundo Municipal de Transportes, não ao trabalhador.
O prefeito pretende economizar R$ 1,2 bilhão com o fim dos cobradores e do sistema de controle de bilhetagem. A conta poderia finalmente fechar caso o governo federal transfira os recursos da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) da gasolina para as cidades. “Nós estimamos que deve ocorrer um aumento de 15% dos passageiros nos horários de pico, e de 25% nos demais horários”, afirmou Nunes.
Câmara
A Câmara Municipal de São Paulo montou um grupo para discutir a tarifa zero, presidido pelo vereador Paulo Frange (PTB), um expoente do Centrão, que apoia Nunes. A oposição também avaliza a medida, mas em um formato diferente daquele imaginado pelo atual prefeito.
Luana Alves, líder do PSOL na Casa, disse que o partido é contrário à demissão dos cobradores, que deveriam ser transformados em auxiliares dos motoristas. Ela também prega o aumento da fiscalização dos gastos com o sistema. Com 27 anos, Luana era estudante de Psicologia e participou das manifestações em 2013. “Foi quando rompi com o PT e fui para o PSOL”, afirmou.
O deputado Jilmar Tatto (SP), secretário de Comunicação do PT, defende a tarifa zero por meio da aprovação do que chama de Sistema Único de Mobilidade, uma espécie de marco do transporte público no País. “Assim como o SUS é gratuito e universal, o transporte também tem de ser gratuito e universal. Já temos a tarifa zero em cerca de 70 cidades do Brasil”, disse o deputado, que foi candidato à Prefeitura de São Paulo em 2020.
Tatto era secretário de Transportes na gestão de Fernando Haddad (PT), quando os protestos do MPL emparedaram os petistas, em junho de 2013, obrigando o prefeito a recuar do aumento de R$ 0,20 na tarifa. Após a onda de manifestações, Haddad resolveu apostar tudo no tema da mobilidade, com a expansão de faixas exclusivas de ônibus e a criação de ciclovias. Foi Tatto quem pilotou essa mudança.
Financiamento
Agora, uma década depois, Tatto afirma que a tarifa zero pode virar realidade. “Do ponto de vista técnico, não há dificuldade alguma. E, do ponto de vista financeiro, é possível. Espero que os candidatos coloquem a medida como bandeira, para mudar a vida da cidade”, disse. Tatto e Nunes já conversaram sobre como garantir o financiamento da gratuidade. Além de bater à porta do Congresso, Nunes levou a proposta à Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e ao ministro das Cidades, Jader Filho, que é do seu partido, o MDB.
“Sendo possível, vou fazer. Não sendo, não vou tirar dinheiro de outras áreas para colocar no transporte”, afirmou o prefeito. Em 2013, ele era vereador em São Paulo. “Para mim, foi assustador aquele momento, aquela situação. Depois, tivemos correções de tarifas maiores, sem manifestações daquela magnitude.”
Quando Haddad assumiu a Prefeitura, em 2013, o subsídio ao sistema custava R$ 960 milhões à cidade. Quatro anos depois, essa conta havia subido para R$ 3 bilhões.
A líder do PSOL é de uma geração de políticos que apareceu em 2013. “Eu vivi junho em outro lugar. Eu era uma jovem e tomei muita porrada. Era uma estudante de segundo ano de Psicologia”, descreveu. Luana critica a possibilidade de a tarifa zero ser usada pelos adversários apenas para fins eleitorais e, depois, para “resolver o problema financeiro das empresas, acossadas pela queda do número de passageiros”.
Centro-direita
Das 72 cidades que adotaram a medida no Brasil, apenas seis têm mais de cem mil habitantes, de acordo com dados do geógrafo Rafael Calábria. Outras 16 possuem entre 50 mil e 100 mil habitantes, como Vargem Grande Paulista, na Grande São Paulo. Ou seja, a maior parte dos municípios que adotou o modelo é de pequenas cidades. “E a maioria é administrada por prefeitos de centro-direita”, disse o coordenador de Mobilidade Urbana do Idec.
Na sua avaliação, como muitas dessas cidades não têm muito uso de transporte e a prefeitura já paga uma grande parcela do vale transporte aos funcionários públicos, é mais fácil fechar a conta da tarifa zero deixando de pagar o vale e de ter os custos da bilhetagem. “Não é tão difícil fechar a conta em cidades menores”, afirmou.
Para Calábria, além do aniversário de dez anos das jornadas de 2013 e da decisão de Nunes de estudar a adoção da medida, a discussão do assunto ganhou corpo após 300 cidades terem adotado a tarifa zero no dia da eleição de 2022. “Desde então, o debate entrou em outro nível”, disse.
O futuro marco do transporte público, na opinião do geógrafo, deve servir para reestruturar a gestão, a qualidade e o financiamento do setor, definindo o papel de Estados e da União na área, que hoje está entregue aos municípios. “O tema estará nas eleições de 2024. Disso não tenho dúvida”, resumiu Calábria.