Artigo: Tarifa zero é política de inclusão social no transporte público, mas sua implantação recomenda cuidados

Da ANTP
Por Luiz Carlos Néspoli*
Foto: Thiago Martins (UNIBUS RN)

A ideia da tarifa zero foi retomada pelo prefeito de São Paulo após 32 anos do seu lançamento pelo governo de Luiza Erundina em 1990. Ao mesmo tempo, representante do novo governo federal eleito e que tomará posse em janeiro de 2023 se manifesta favorável a essa política. Depois de tanto tempo, a diferença é que o tema agora foi colocado novamente em discussão pública pelo setor público, diferentemente do que aconteceu nesse longo período em que ficou restrito ao setor técnico.

Ao longo dos anos foram sendo introduzidos benefícios tarifários a segmentos específicos da população, como o Vale Transporte na década de 1980 (25% das viagens atuais), a gratuidade para os idosos a partir de 65 anos na Constituição de 1988 (de 8 a 12% das viagens) e, muito mais cedo, o desconto de pelo menos 50% na tarifa dos estudantes (cerca de 8% das viagens) e outros beneficiários menos expressivos em quantidade.

Embora contribuíssem muito para a população mais pobre, tais políticas se basearam em critérios não necessariamente vinculados à renda dos beneficiários. No caso do Vale Transporte, para 44 viagens/mês (ida e volta) a uma tarifa média de R$4,40, para o empregado com Salário Mínimo (R$1.213,00) o benefício é de 62% do custo total, mas para quem ganha até 2 SM, por outro lado, o desconto já cai para 25% e, finalmente, é zerado para quem recebe salário a partir de R$3.220,00. Nos casos dos idosos a partir de 65 anos (ou de 60 em algumas localidades) o benefício independe da renda do usuário, assim como no desconto dos estudantes.

Mas, se atentarmos para o fato de que apenas 37% das ocupações (PNADC) têm a carteira de trabalho assinada e, portanto, direito ao Vale Transporte, este benefício inexiste para 63% das outras ocupações, dentre as quais predominam os trabalhos menos valorizados, os serviços esporádicos, empregos domésticos sem carteira assinada e micros empresários individuais. Tão importante quanto aqueles com algum tipo de ocupação e renda, mas que mesmo assim têm dificuldade de pagar a tarifa, contam-se ainda os 12% da população de desempregados, para os quais não há recurso para uma busca eficiente de empregos.

Outro sintoma da dificuldade de acesso ao transporte público pode se observado na quantidade de viagens a pé. Segundo o Sistema de Informações da Mobilidade Urbana da ANTP (SIMOB), que avalia a mobilidade em 533 cidades brasileiras com mais de 60 mil habitantes, 38% das viagens diárias são realizadas pelo modo a pé, sendo razoável pensar que pelo uma parte delas seja por falta de condições de pagamento da passagem.

Mas não estamos falando apenas das viagens tipicamente rotineiras, como as de trabalho e escola, mas também de outras que hoje são reprimidas por dificuldade de acesso ao sistema de transporte. Refiro-me a viagens por motivos de saúde, de acesso à justiça, para serviços e compras e de acesso a parques e outras áreas de entretenimento e lazer, que inibem passeios familiares.

Se tais políticas facilitaram economicamente o ingresso de parte da população ao sistema de transporte, a política de tarifa zero é inegavelmente uma política mais ampla e abrangente de inclusão social. Mais do que isso, garante o direito à cidade, pelo menos no que diz respeito à possibilidade de acesso ao que a cidade oferece para suas vidas.

Todavia, a implantação da tarifa zero traz implicações importantes que devem ser discutidas por toda a sociedade. A primeira delas é a possibilidade já constatada do crescimento da demanda. Será que a população se desloca tanto quanto gostaria ou necessita? Há uma demanda reprimida no uso do transporte público?

O SIMOB, observando as 533 cidades brasileiras, mostra que o índice de mobilidade urbana (quantas viagens per capta diárias são feitas pela população) é de 1,65 viagens por habitante, enquanto em grandes cidades de países mais desenvolvidos esse índice é próximo de 4. Estudo realizado pela ANTP mostrou que o índice, quando não se considera os motivos trabalho e escola/creche, baixa para 0,72 viagens per capta por dia em populações mais vulneráveis.

O crescimento da demanda na hora de pico requer um correspondente incremento de oferta para abrigar esses novos contingentes de pessoas (nos mesmos padrões atuais de conforto, portanto sem melhoria). Há experiências no país que indicam aumentos de demanda de 30% e de até 400% (cidade de Caucaia/CE). Isso tem implicações de possibilidade física de atendimento. Recentemente, o prefeito de São Paulo apresentou à mídia uma estimativa de aumento de demanda de 15% no pico e de 25% no entre pico na hipótese de implantação da gratuidade total na cidade. Para isso, seriam necessários mais 2.000 ônibus na frota de operação dos picos.

Nas cidades de pequeno porte, o aumento de ônibus em circulação talvez não requeira providências maiores de infraestrutura. Mas, nas cidades médias, capitais ou regiões metropolitanas, não há como aumentar a frota de ônibus em circulação sem a implantação de prioridade na via e, portanto, de investimento em infraestrutura que suporte a adição de ônibus sem comprometer a sua própria operação. Se considerarmos as cidades que contam com sistemas metroferroviários, deve-se considerar que há aí uma impossibilidade tecnológica de aumento da oferta de trens, dados os limites técnicos para redução do intervalo entre composições.

Ao lado do impacto na operação, no sistema viário das cidades e nas condições de conforto dos passageiros, há a necessária discussão dos recursos para implantação da tarifa zero. Todos os benefícios criados até hoje, e já citados neste artigo, foram e são financiados (injustamente) pelo passageiro que paga a passagem e que, segundo o SIMOB, isso representa uma receita nacional da ordem de 61 bilhões de reais anuais (2018). Na ausência da tarifa, de onde virão estes recursos?

Estamos falando da necessidade de recursos não tarifários há muito tempo, em nome de uma política de modicidade tarifária, um dos princípios da Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei 12.587/2012). As principais fontes seriam os orçamentos públicos, cobrança do uso do sistema viário pelos automóveis, política de tarifação de estacionamentos públicos e privados, transferência de recursos do IPTU, do IPVA, multas de trânsito e contribuição dos empregadores (deixando o vale transporte de existir), dentre outras possibilidades.

Há ainda opiniões técnicas de que esses recursos tarifários não mais pagos ao transporte e sendo migrados para outras atividades econômicas podem resultar em aquecimento da economia e reversão de recursos para a sociedade na forma de arrecadação de tributos.

Recursos orçamentários devem ser discutidos perante outras políticas sociais, como as de educação, saúde, segurança. Já os advindos de contribuintes de segmentos da população, a discussão é com os proprietários de automóveis e de imóveis. Em ambos os casos após uma ampla discussão com a sociedade.

Ao lado dos problemas operacionais e financeiros citados, há também implicações na organização da rede de transporte público composta por vários modos de titularidades diferentes, integrados ou não, como ocorre nas regiões metropolitanas e aglomerados urbanos, que remetem a questões políticas, institucionais e legais.

É possível uma ação isolada de um prefeito, ou de parte dos prefeitos, ou de um governador de uma região metropolitana? É possível os sistemas de transporte público gratuitos conviverem com sistemas pagos? Em São Paulo, 65% dos passageiros de metrô têm origem em linhas de ônibus integradas às estações. A ferrovia metropolitana, por sua vez, atravessa 18 cidades em que há linhas de ônibus locais e intermunicipais. Sendo tais linhas gratuitas e o metrô e a ferrovia pagos, que alteração ocorreria nas demandas transportadas? Sendo tudo gratuito e mantendo-se a integração com os ônibus, como o metrô e a ferrovia suportariam o acréscimo de passageiros? Os orçamentos municipais e o estadual suportariam?

Ainda é necessário dizer que a gratuidade não pode ser um fim em si mesma. O transporte público já tem qualidade questionável e o aumento da demanda pode levar a uma piora no serviço prestado em razão de aumento da lotação nos horários de pico sem uma correção na oferta. A implantação da tarifa zero não pode vir desacompanhada de melhoria de qualidade e eficiência do transporte público. De um lado, porque pode afugentar passageiros para outros modos de transportes, como os aplicativos e até mesmo para o uso do automóvel, indo contra as diretrizes da política nacional de mobilidade. De outro, porque toda sociedade questionaria seu esforço de financiamento tendo por resultado um transporte pior do que havia antes.

Então devemos ser contra a tarifa zero? Não. A gratuidade inclui os mais vulneráveis no transporte público, garantindo a universalidade prevista na Constituição. O maior ir e vir das pessoas atende a novas necessidades, fortalece o funcionamento da cidade, pode aquecer a economia e gerar nova arrecadação.

O modelo histórico de financiamento do custeio do transporte público baseado na arrecadação da tarifa não foi capaz de manter um sistema mais acessível, de maior qualidade, mais barato e inclusivo. Esgotado como concepção, exige-se uma alteração profunda na sua organização e forma de gestão. Daí a razão da elaboração do projeto de lei do Marco Legal do Transporte Público, que propõe uma revisão profunda na forma de contratação dos serviços, no financiamento da infraestrutura e do custeio e na exigência de uma transparência plena das informações e dados dos serviços contratados.

Se o caminho for a gratuidade total do transporte público, sua implantação deve contemplar:

a. Uma concertação entre os titulares dos serviços que atuam numa mesma região: União, Estados e Municípios. Um titular não pode implantar sozinho e unilateralmente a gratuidade total em sua rede;
b. Um planejamento de rede de transporte público coletivo que integre de forma racional os diversos modos de transporte, com frequência e capilaridade que se traduzam em melhoria dos serviços para a população. Não é por que é de graça que o serviço pode ser ruim;
c. Recursos orçamentários dos três níveis de governo – União, Estados e Municípios para não sobrecarregar os orçamentos das cidades;
d. Recursos adicionais oriundos de todos os beneficiários de um sistema de transporte público de qualidade e eficiente;
e. Infraestrutura adequada para os sistemas de transporte na via pública – ônibus, BRTs e VLTs, com prioridade em relação à circulação de automóveis;
f. Uma política de restrição ao uso do transporte individual para viagens cotidianas.

Não seria melhor tratar a tarifa zero como um destino, um processo progressivo com ampliação gradativa de beneficiários, sem ônus novos para os passageiros pagantes, com adequação progressiva da oferta à demanda que amplie o conforto e a qualidade, e com a introdução da ideia do subsídio e receitas extras tarifárias como fato concreto e não de contribuições eventuais e espasmódicas apenas em momentos de crise?

É necessário mudar para melhor a experiência de viagem do usuário. Se conseguirmos implantar a ideia de que o custo do transporte não pode ser rateado apenas entre os passageiros pagantes, mas que deve ser coberto com a receita também de contribuições de toda a sociedade, que é beneficiária indireta, com melhoria na qualidade do serviço, já se terá dado um passo gigantesco da garantia do direito social ao transporte público.

* Luiz Carlos Néspoli é é Superintendente da ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos).

** O texto que você acabou de ler não reflete, necessariamente, a opinião do UNIBUS RN, sendo de total responsabilidade do seu autor.

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