Da Tribuna do Norte
Foto: Matheus Felipe
Dados da bilhetagem eletrônica do transporte público de Natal mostram que de 2019 para cá a quantidade de viagens dos ônibus urbanos caiu 52,8%. Nos primeiros seis meses deste ano, os veículos fizeram 495.202 viagens, número bem abaixo do primeiro semestre de 2019, período pré-pandemia onde os veículos rodaram 1.049.329 vezes. As informações da Secretaria de Mobilidade Urbana (STTU), analisadas pela Tribuna do Norte, revelam ainda que nesses três anos, o sistema registrou redução de 41,6% das linhas e 31,3% da frota, além de uma perda de 16 milhões na quantidade de passagens.
Os números confirmam a sensação de abandono do transporte público natalense por parte da população. Ao longo da semana, a reportagem percorreu paradas e abrigos, conversou com passageiros dentro dos ônibus e colheu centenas de relatos de usuários das quatro regiões da capital. Em comum, a indignação com superlotação, poucas viagens, veículos antigos, falta de circulação em finais de semana e feriados, retirada de linhas, alto preço da passagem e mudanças inesperadas de itinerários.
As campeãs de reclamações são as linhas que atendem o bairro do Planalto, na zona Oeste de Natal. Os relatos citam a superlotação como um dos principais problemas. A operadora de caixa Rosemary Santos diz que é comum ficar até duas horas na parada para pegar o ônibus da volta para casa. “Às vezes até passa um, mas não para porque já está muito lotado”, diz. Na ida, pela manhã, a viagem dura cerca de uma hora, da Rua Engenheiro João Hélio Alves Rocha até a margem da BR-101. “Daqui eu atravesso pelo viaduto e vou para o trabalho”, conta.
A TN subiu em um ônibus da linha O-33 (Planalto/Praia do Meio via BR-101) e acompanhou o trajeto de Rosemary e demais trabalhadores e estudantes. Às 7h52, o veículo saiu do terminal, de onde as primeiras pessoas entraram no veículo. Uma delas foi o estudante universitário Thiago André. “Meus horários são variados, mas sempre tem muita gente. Como eu pego aqui perto do terminal, ainda consigo ir sentado, mas na volta é um inferno. Se a gente conseguir entrar pela porta já é muito”, conta. Pouco mais de dez minutos depois, às 8h04, o O-33 já estava com todos os assentos ocupados.
Rosemary sobe ainda na Rua Engenheiro João Hélio Alves Rocha e consegue se acomodar. “Os que saem mais cedo, às 6h, 7h, também vão muito cheios. É um serviço péssimo. Muita gente, muito calor, gente espremida na porta. É tanta gente que quando alguém precisa descer, a pessoa que está imprensada na porta tem que descer também e depois voltar. Na volta você chega em casa tarde, cansada do trabalho e do ônibus. É um negócio que eu não sei mais nem o que falar”, relata Rosemary.
Ao passar pela Rua Mira Mangue, uma das principais vias do Planalto, o ônibus já está completamente lotado, com as mãos dos passageiros disputando espaço para se segurar nas barras de ferro do veículo. Às 8h25, mais pessoas continuam entrando no ônibus, mas sequer conseguem passar pela catraca e ficam ali mesmo, próximo do motorista e da porta de entrada. A roleta vai girando conforme as pessoas vão descendo e liberando espaço na parte final do corredor. “É assim todo dia essa luta, e ainda tem as ruas esburacadas, o que atrasa ainda mais”, complementa Thiago André.
Os primeiros passageiros começam a descer às 8h37 na Rua Cidade do Sol, que cruza a BR-101. O ônibus O-33 segue pela marginal até acessar o viaduto próximo à loja Leroy Merlin, em direção ao Centro. Rosemary desce por volta das 8h44. “Todo dia nesse aperreio, parece uma lata de sardinha”, brinca. “Já faz quatro anos que tenho essa rotina, antes da pandemia era melhor. A gente conseguia ir até sentada, tinham mais ônibus.”, comenta Rosemary. Às 9h12, o ônibus começa a esvaziar, mas logo enche novamente ao chegar na região central da cidade, de onde retorna e faz o percurso inverso.
A operadora de cartões Tayonara Micaelle utiliza a linha O-38 todos os dias para ir ao trabalho e expõe os mesmos problemas de Thiago André e Rosemary Santos. Ela conta também que quando precisa trabalhar no fim de semana é obrigada a fazer grandes deslocamentos a pé para conseguir pegar um ônibus alternativo. “É bem ruim para a gente que depende do transporte. Às vezes a gente se atrasa, pega muito lotado, não são compatíveis com os horários. Não são todos que param porque já estão muito lotados”, conta.
Tayonara tem esperança de que o serviço possa melhorar no futuro. “Não só a questão de diminuir a passagem, mas a gente quer que melhore. Senão, já que o valor não vai baixar, que se coloquem mais ônibus, se ajeitem os ônibus que estão circulando. Isso seria muito bom para a gente que é trabalhador e depende desse recurso”, completa.
Sistema vem encolhendo a cada ano: O comparativo entre as viagens feitas no primeiro semestre de 2022 com o mesmo período dos anos anteriores aponta que o sistema de ônibus urbanos de Natal vem encolhendo ano a ano. Atualmente, a rede conta com 396 veículos, 56 linhas e uma média mensal de 82.533 viagens, dados aquém do que a cidade registrava em 2019 e inferiores aos períodos mais restritivos da pandemia, em 2020 e 2021. As viagens foram caindo gradualmente: de 1,04 milhão em 2019 para 642,1 mil em 2020; depois para 541,5 mil em 2021; até chegar ao número atual de 495,2 mil.
As passagens, isto é, as vezes que as pessoas passaram pelas catracas dos ônibus, também apresentaram queda entre 2019 e 2021, mas, diferentemente do que ocorreu com as viagens, o número de passagens voltou a subir em 2022. No primeiro semestre deste ano foram contabilizadas 27 milhões de passagens, número superior aos primeiros semestres de 2021 (21,4 milhões) e 2020 (24 milhões). Em 2019, o sistema de bilhetagem eletrônica da STTU registrou 43,6 milhões de passagens, entre gratuidade, inteira e meia passagem.
A titular da pasta, Daliana Bandeira, foi procurada pela TN para repercutir os dados, mas não quis gravar entrevista. Ela comunicou que não iria comentar o assunto porque não havia analisado os dados que a própria STTU divulgou.
O engenheiro civil e especialista da área, Carlos Alberto Batinga, diz que o transporte urbano da capital potiguar sentiu os impactos da pandemia de forma mais intensa porque não houve compensação financeira do Município. “A pandemia criou esse problema no País inteiro, não só em Natal. As empresas diminuíram a oferta em função da diminuição da demanda de passageiros. As empresas têm um custo que precisa ser coberto pelos passageiros. Como diminuíram os passageiros foi diminuindo a oferta. Não tinha dinheiro ‘externo’. Em algumas cidades, como São Paulo, Salvador, Recife, colocaram dinheiro extratarifário para manter o sistema mais robusto”, explica.
A oferta caiu em forma de redução de frota e de linhas. Em junho de 2019, Natal tinha 96 linhas circulando ante 56 itinerários em junho último, o que representa uma redução de 41,6%. Já a frota passou de 577 veículos para 396 no mesmo intervalo comparativo, uma diminuição de 31,3%. Carlos Batinga, que foi superintendente de Transportes de Natal entre 1983 e 1986, afirma que em nenhum local do país, a rede conseguiu se reerguer e atingir índices de antes da pandemia. Em Natal não deve ser diferente.
“Algumas cidades conseguiram chegar a 70%, 75%, do que era na pandemia. Isso mudou muito as pessoas, as pessoas passaram a procurar outras alternativas. O modo a pé aumento muito, as empresas adotaram fortemente o home office, algumas alugaram casas mais próximas de onde trabalham para diminuir o deslocamento, além do transporte por aplicativo. Há uma rearrumação de comportamento, até mesmo no próprio comércio, com muita gente comprando online”, analisa.
Batinga é membro da Associação Brasileira de Transporte Público (ANTP), organização não governamental que foi contratada pela STTU para organizar o sistema de ônibus de Natal. Ele diz que, apesar dos problemas, o cenário tem condições de se recuperar. “Sempre tem solução. É possível se recuperar. Agora tem que ter decisão política de ver, se precisar, de se colocar recursos. De lá para cá o custo aumento tremendamente, veja a diferença do preço do diesel, a diferença do salário do motorista”, declara o consultor.
Em 31 de agosto, a Prefeitura assinou a ordem de serviço que autorizou o início de uma consultoria para melhorar a rede, que será capitaneada pela ANTP. Segundo a Prefeitura, a ideia é “organizar a casa” com “o que tem” em um curto prazo, como forma de contornar problemas mais urgentes deixados pelo abandono de linhas ao longo da pandemia. O contrato é de R$ 526,6 mil e tem duração de 120 dias.