Do Jornal Plural (PR)
Foto: Jan Vašek (Pixabay)
O viajante se dirige ao guichê da viação. Pede uma passagem para o primeiro horário. Abre a carteira, retira as cédulas de dinheiro para fazer o pagamento. Recebe o bilhete, pede a caneta emprestada, e preenche com seus dados pessoais. O papelzinho é apresentado ao motorista na hora do embarque. Conferência feita, sobe no ônibus, toma assento, abre a janela, acena e troca as últimas palavras com quem fica.
Imagem típica de uma rodoviária – de uma rodoviária da década passada. Hoje, essa cena é cada vez mais rara.
A compra da passagem geralmente é feita pela internet, ou por totens das empresas instalados nos terminais. O bilhete, digitalizado e já com todas as informações do passageiro, fica no celular, conferido pelo motorista que, com outro aparelho, faz a leitura do QR Code que confirma a autorização para o embarque. O veículo tem janelas vedadas, por causa do ar condicionado. Quem fica está longe, uma vez que o acesso à plataforma é cada vez mais restrito.
Essa sim uma cena mais recorrente nas rodoviárias brasileiras, ao menos naquelas das grandes e médias cidades. De 20 anos para cá, as inovações tecnológicas se fazem presente no transporte de passageiros por ônibus, tanto nos trâmites – reserva e venda de passagens, embarque – como nos terminais e nos próprios veículos.
Nestes, há desde sofisticações mais visíveis – como design arrojado e acabamento interno, desenvolvidos pelas encarroçadoras – a inovações menos perceptíveis aos usuários, mas sentidas pelos motoristas, implementadas pelos fabricantes de chassis. Ônibus dois andares com quatro eixos, motores mais econômicos e menos poluentes, softwares que auxiliam na condução do veículo, wifi a bordo, cabines individualizadas para os passageiros, acessibilidade para pessoas com deficiência estão entre os avanços nas últimas duas décadas.
Não está para todo mundo: Porém, há que se ressalvar: nem todas as inovações estão à disposição de todos os trechos espalhados pelo território nacional. Principalmente aquelas votadas essencialmente ao passageiro. Opções de conforto, acessíveis, estão restritas a linhas mais cobiçadas pelo mercado.
Se é possível viajar seis horas de Curitiba a São Paulo em uma poltrona leito cama, porque há certa competição entre as operadoras, um percurso que leva dias entre o Paraná e Pernambuco, ou Ceará, ou entre São Paulo e o Pará, ainda é feito em ônibus apertados. São, via de regra, linhas cumpridas por apenas uma empresa. Sem concorrência e sem regulamentação que considere o sistema um serviço, e não um mercado, o usuário não encontra saída a não ser encarar viagens desgastantes.
“O desenvolvimento pleno do setor de transporte rodoviário interestadual de passageiros só ocorrerá com a ampliação da competição entre os operadores, atuais e novos entrantes, o que dependeria do empenho da agência reguladora [ANTT] em fazer valer a vontade da lei, a despeito da notória e histórica pressão dos grupos econômicos que dominam esse mercado”, assinala o mestre em Engenharia de Transportes Felipe Freire da Costa.
Justamente pela ineficiência na prestação dos serviços pelas operadoras convencionais é que os aplicativos de ônibus rodoviários encontraram adesão dos usuários, avalia o especialista. “Parte significativa das empresas opera de forma ineficiente, em função da falta de estímulo concorrencial. Isso explica, em grande medida, o crescimento exponencial dos aplicativos de mobilidade interurbana, seja de carona solidária, fretamento colaborativo ou de precificação dinâmica”, argumenta o especialista.
Para Costa, os grupos tradicionais seguem o equívoco de tentar “barrar a inovação”, com o lobby por um marco regulatório que dificulte a atuação das plataformas de mobilidade. Em sua avaliação, esses aplicativos tendem a se concentrar em trechos dentro de um mesmo estado, pela demanda e a infraestrutura disponíveis serem mais vantajosas. Deslocamentos interestaduais, exceto linhas mais movimentadas, devem ser menos atraentes para essas plataformas.
Complementaridade: Uma regulação que trate o transporte como serviço poderia, até, prever uma complementaridade entre as linhas regulares e trechos feitos sob demanda, sugere o especialista. “Com criatividade e vontade de fazer, é possível compatibilizar a concorrência entre os serviços público e privado de transporte rodoviário de passageiros, com vistas a melhorar o setor aos consumidores do serviço, sem perder de vista as garantias legais aos usuários dependentes do sistema de transportes. Há espaço para todo mundo”, afirma Costa.
Por sua vez, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) adianta que um novo marco legal para o transporte rodoviário interestadual de passageiros não terá intenção de promover “impedimentos à utilização de plataformas tecnológicas que fazem oferta e comercialização de serviços, desde que estas observem as regras vigentes para cada tipo de serviço, e não sejam desvirtuadas as modalidades dos serviços que são prestados”.