Artigo: Transporte público – Acesso ou bloqueio?

Do Jornal O Estado de S. Paulo
Por Sergio Avelleda*
Foto: Matheus Felipe

Já virou lugar-comum afirmar que a pandemia levou o transporte público à maior crise de sua história. De um dia para o outro, tal como o filme Querida, encolhi as crianças, a demanda simplesmente sumiu. Alguns sistemas registraram perdas de mais de 70%, enquanto os custos fixos se mantiveram nos patamares e o preço dos insumos (especialmente, energia) dispararam.

Mas não vamos nos iludir. Já havia algum tempo a crise assombrava o setor e ele caminhava para o colapso em passos lentos.

Muitas são as medidas que podem e devem ser adotadas para a retomada e a prosperidade do transporte coletivo. Digo devem porque as cidades não podem renunciar aos sistemas de transporte de massa, organizados e padronizados, sob pena de ampliar a desigualdade e a falta de acesso das pessoas que mais precisam.

Um pilar essencial para facilitar ou não o acesso ao transporte público é o seu sistema de cobrança, o seu sistema de pagamento. Ou, como dizem os técnicos, o sistema de bilhetagem.

Esse componente do sistema de transporte público, que aparentemente é algo simples, tal como um ingresso para um show ou um cinema, na verdade é um dos elementos mais complexos e mais fundamentais. Ele não diz respeito apenas à compra e venda de um direito de viagem. Ele define a eficiência, a capacidade de promover integrações, permite a coleta de dados sobre as viagens, amplia a capacidade de gerenciamento e planejamento do serviço. Em outras palavras, a modernização do sistema de bilhetagem significa a indução de impactos diretos na experiência do usuário, na desoneração do poder público e na geração de novos negócios.

Precisa ser capaz de comercializar os diferentes tipos de bilhetes: vale-transporte, passe estudantil, gratuidades, calcular descontos instantâneos na integração, ser imune a fraudes, ser confiável mantendo-se operacional o tempo todo. Qualquer falha penaliza diretamente o usuário.

Também há, ao redor da questão, a gestão dos recursos financeiros do sistema. O sistema de bilhetagem costuma ser cobiçado porque ele permite administrar uma quantidade grande de recursos oriundos da compra de passagens e que demoram para ser utilizadas.

Ao longo dos anos, o mercado privado desenvolveu diferentes tecnologias e soluções para a operação dos sistemas de bilhetagem. Mas, antes das soluções na ponta da linha, o mercado e as entidades certificadoras desenvolveram padrões de trâmite dos dados e de segurança, além da interoperabilidade, ou seja, a capacidade de o sistema ser utilizado por diferentes meios de pagamento, abrindo novas possibilidades. O blockchain, a capacidade de produzir transações seguras, inaugura uma nova era para a bilhetagem do transporte público.

É preciso considerar, ainda, a integração institucional. Lembro da revolução que foi a integração entre o bilhete único da Prefeitura de São Paulo e o sistema de trilhos, gerido pelo governo do Estado de São Paulo, implantada entre 2005 e 2006. Usuários que não tinham condições de acessar ônibus e metrô na mesma viagem, pois tinham de pagar duas passagens, passaram a viajar mais rapidamente, apenas com a integração tecnológica, o desconto na tarifa. Tudo isso só foi possível graças ao diálogo institucional entre os dois entes: prefeitura e governo do Estado.

Este é um mercado em que a oferta de diferentes soluções e em que, em ambiente competitivo (por meio de licitações públicas) e aberto à participação da sociedade civil (audiências e consultas públicas), os sistemas de transporte podem ser modernizados e ampliar – e muito – o acesso e a sua atratividade.

Ao contrário, escolhas erradas, sem certificação, sem protocolos e sem interoperabilidade podem limitar o acesso, excluindo usuários e perdendo atratividade. Soluções que não sejam transparentes e abertas à sociedade podem levar à diminuição do acesso, e não à desejada ampliação.

Quanto à contratação de empresas para organizar e explorar o sistema de bilhetagem, vemos três diferentes opções para o poder público. A primeira é explorar diretamente o serviço, o que traz a imensa desvantagem da falta de agilidade e de flexibilidade para a contratação de soluções de tecnologia, que evoluem muito mais rapidamente que o tempo de decisão do poder público. A segunda é contratar, sempre mediante licitação, uma empresa privada para explorar o serviço. E a terceira possibilidade – e que me parece ser a melhor, do ponto de vista do interesse público e dos usuários – é o credenciamento de empresas que atendam a protocolos predefinidos, com interoperabilidade, possibilitando a oferta aos usuários de diferentes soluções.

Para atingir a eficiência das cidades, é essencial que o poder público esteja atento às oportunidades que se desenvolvem em parceria com o setor privado. Dessa forma, ambos os setores podem trabalhar de forma integrada e complementar, abrindo espaço para que iniciativas privadas contribuam com ideias e projetos que têm potencial para transformar o segmento, melhorando a experiência para o usuário do transporte público, gerando novos produtos e serviços e contribuindo para o progresso da mobilidade urbana no País.

É tempo de investir na modernização e na facilidade do acesso, e não o contrário.

* Sergio Avelleda foi Secretário de Mobilidade de São Paulo.

** O texto que você acabou de ler não reflete, necessariamente, a opinião do UNIBUS RN, sendo de total responsabilidade do seu autor.

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