Do Mobilize Brasil
Foto: Matheus Felipe/Ilustração
Especialista em transportes, Carlos Batinga discute a crise dos ônibus e não vê saída sem uma ação do governo federal. Enquanto isso, as ruas se enchem de carros e motos
Ex-prefeito da cidade de Monteiro (PB), ex-deputado estadual, Carlos Batinga é engenheiro especializado em planejamento de transportes, consultor e membro do conselho da ANTP e do MDT. Foi superintendente de Transporte e Trânsito em algumas cidades brasileiras, com destaque para Natal, Salvador e João Pessoa. Nesta pequena entrevista ele revela alguns problemas que levaram à crise nacional do transporte público e argumenta que não haverá saídas sem a definição de uma política nacional que reorganize a gestão e o financiamento dos sistemas de transportes urbanos.
Centenas de cidades enfrentam problemas com o transporte público no país. E dúzias de textos, estudos e entrevistas apontam que a crise está no binômio qualidade-financiamento. Qual sua visão sobre o tema?
O problema do transporte público, comum a praticamente todas as cidades brasileiras, é fruto do descaso, da falta de prioridade ao serviço ao longo do tempo. Nunca foi dada a devida atenção ao transporte coletivo, apesar de sabermos que cidade alguma consegue resolver seus problemas de mobilidade sem contar com ele. Como você diz, muitos estudos e projetos têm sido feitos, nas áreas jurídica, técnica e operacional, apontando alternativas de como solucionar o problema. Centenas de boas ideias são discutidas em muitos simpósios. Acontece porém que o assunto não tem evoluído por falta de decisão política. Sendo assim, a crise deve persistir, e por muito tempo, até que a consciência da importância do transporte coletivo sobrevenha aos tomadores de decisão nos municípios, estados e principalmente no governo federal. É impossível pensar no desenvolvimento de um país sem investimentos no transporte coletivo. Por quê? Bem, se 85% das pessoas já vivem nas cidades, que são responsáveis pela produção de praticamente 70% do PIB, é fácil concluir: ou as cidades funcionam ou não iremos adiante, muito menos teremos qualidade de vida.
Teresina tinha um projeto de transporte estruturado, o Inthegra, que foi abandonado por falta de empresas interessadas na concessão. E há mais de um ano a cidade está sem transporte público, obrigando a população a utilizar os “ligeirinhos”, carros que fazem o serviço irregularmente. Como restabelecer um sistema organizado, com boa qualidade e tarifa adequada à renda local?
A crise no transporte coletivo é maior em algumas cidades, uma delas é a capital do Piauí. Como você lembrou, Teresina já teve um transporte relativamente bem estruturado, com empresas, boa qualidade de frota, um órgão de gerência que funcionava a contento. Porém, nos últimos anos, dado o abandono e a falta de decisão política de priorizar esse setor, tudo foi sendo praticamente extinto. A pandemia da covid-19 só fez apressar uma crise que vinha de anos. A cidade passou a ser atendida por transporte clandestino, que diminuiu a segurança das pessoas. Voltamos à década de setenta, início dos oitenta, quando o transporte coletivo era praticamente desregulamentado, não só aqui, mas em várias cidades brasileiras e em toda a América Latina. Naquela época, a conclusão a que se chegou foi que, ou nos esforçávamos para regulamentar o transporte, ou não haveria nunca um transporte de qualidade. Então, o que temos hoje é uma reversão desse processo, que vai comprometendo a capacidade de oferta de qualidade e segurança no deslocamento das pessoas. Aqueles de mais baixa renda, principalmente, são cativos do transporte coletivo. Com o serviço desregulamentado, não temos como garantir que continuem trabalhando e produzindo normalmente. O que está em jogo é o próprio desenvolvimento da cidade. Teresina hoje já apresenta uma situação de dificuldade para suas atividades econômicas e sociais, por falta do transporte coletivo. É muito grave e preocupante, e exigiria ações mais efetivas para reverter uma situação que compromete a qualidade de vida e o desenvolvimento econômico e social da cidade.
Várias cidades usam o modelo da planilha Geipot para o cálculo da “tarifa operacional”. Essa fórmula ainda é a mais adequada para as cidades brasileiras?
Sim, muitas cidades ainda utilizam essa famosa cartilha para fazer os cálculos do custo operacional de serviço de transporte coletivo. Eu tive a oportunidade de participar, na década de oitenta, da elaboração desse trabalho, e dez anos depois também de sua revisão e atualização. A fórmula, uma referência para se poder fazer esses cálculos, foi muito importante numa época em que não havia ainda as licitações, nem os contratos para a prestação do serviço de transporte coletivo. Também havia a preocupação de atender ao país em toda a sua diversidade. Hoje porém cada localidade deveria estar investindo e trabalhando para fazer sua planilha, tendo aquela apenas como referência. Isso não ocorreu: a maioria das cidades continuou utilizando o Geipot como se fosse uma planilha geral, quando de fato servia nacionalmente mais para ajudar no início de implantação dos órgãos de gerência locais. Então, embora tenha sido importante, as características locais e as novas formas do serviço devem procurar suas soluções provavelmente mais eficientes de fazer o levantamento dos custos. O mais importante é a forma de monitorar e medir os principais itens de cálculo. A quilometragem rodada, principalmente, precisa ter meios eficientes de se medir, como também os passageiros transportados. São esses os pontos que mais pesam na elaboração da planilha. Então, cada lugar tem que se estruturar para montar suas regras dentro dos novos contratos, com eficiência no levantamento das informações. Esse ponto foi, digamos, relevado em muitas cidades, o que sem dúvida é um grande problema.
Outras prefeituras estão adotando uma fórmula simples: contratam os ônibus com motoristas e coordenam a operação, em alguns casos com tarifa bem subsidiada, permitindo a gratuidade. Como o senhor vê essa possibilidade?
Sim, muitas cidades, para resolver o problema maior decorrente da pandemia, partiram para fazer contratações diretas utilizando recursos públicos municipais, não deixando que o serviço de transporte coletivo entrasse em colapso. É uma ação emergencial, que foi utilizada por várias prefeituras e surtiu efeito. Agora, a médio e longo prazos é impossível às prefeituras manterem esse tipo de ação. É muito recurso para apenas ser bancado pelo município, até porque o problema de transporte urbano – considerando o fato de o país ser eminentemente urbano e gerar a maior parte do PIB – é uma questão nacional. O problema tem que resolvido pelas três esferas de governo, em especial o governo federal, com a elaboração de uma política para o setor, e tendo a participação dos governos estaduais e municipais nessa ação. Isso é indispensável, eu diria, e é um pensamento unânime de todos aqueles que estudam e trabalham com transporte coletivo. O desafio agora está sendo sensibilizar as três esferas políticas a priorizar o transporte coletivo, principalmente a federal, que tem dificultado essa interlocução. As prefeituras passam por grandes dificuldades e não estão conseguindo sensibilizar o governo central na elaboração dessa política e no aporte de recursos. Penso que só teremos solução para o transporte urbano quando houver uma ação nacional mais efetiva. Até lá, estaremos elaborando estudos e fazendo discussões, mas avançando pouco.
Mas como equacionar o problema do transporte?
Como disse, o maior desafio da mobilidade urbana no momento atual é a elaboração de uma política nacional para o setor, capitaneada pelo governo federal, e envolvendo as três esferas de governo. Se o país é eminentemente urbano, é inadmissível que apenas os municípios arquem sozinhos com essa responsabilidade. Obras pontuais de pontes, vias e viadutos não podem ser contabilizadas como “mobilidade urbana” se não estiverem dentro de um contexto maior e concatenadas com o plano diretor e o plano de mobilidade urbana da cidade. O crescimento da frota de automóveis e motos está diretamente ligado à situação econômica do país, aos incentivos que o governo federal oferece ao setor e à disponibilidade de alternativas no nível local. Antes da crise econômica que se iniciou por volta de 2016, a taxa de crescimento anual da frota de João Pessoa, por exemplo, era quatro vezes maior do que a taxa de crescimento da população. Se o poder público não repensar a forma de enxergar a mobilidade urbana, não vai ter ponte, viaduto ou alargamento de vias que consiga atender a demanda de espaço para acomodar esse crescimento da frota motorizada.