Do O Estado de SP
Foto: Edvan Júnior/Ilustração
A pandemia do coronavírus representa uma oportunidade para desengavetar projetos de incentivo ao transporte ativo nas cidades brasileiras, com deslocamentos a pé ou de bicicleta. E o exemplo pode vir principalmente de países vizinhos. A análise é de especialistas que participaram do segundo dia do Summit Mobilidade Urbana, realizado nesta terça-feira, 18, de forma digital. A programação completa do evento, que tem inscrição gratuita e segue até a sexta-feira, 21, está disponível no site summitmobilidade.estadao.com.br.
Os impactos da crise sanitária para a mobilidade urbana foram alvo de debate no primeiro painel do dia. Diretora-executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) Brasil, Clarisse Cunha Linke avalia que, em diversos lugares do mundo, a covid-19 “deixou claro” o uso de bicicleta como solução de transporte mais sustentável, barato e seguro – já que o deslocamento é feito em área aberta e sem aglomeração. Entretanto, a discussão não avançou no mesmo ritmo por aqui, segundo a especialista.
“Desde a última década, com maior ênfase, a bicicleta já vinha sendo percebida como fundamental às grandes agendas globais, no que diz respeito a objetivos de desenvolvimento sustentável”, afirma. “Na pandemia, o que se vê é uma aceleração de algo que já estava acontecendo. Cidades europeias e da América Latina apresentaram planos para suas malhas cicloviárias e construíram novos corredores.”
Em Nova York, as viagens de bike aumentaram durante o período. Em Berlim, lojas de bicicleta foram consideradas serviços essenciais desde o início da pandemia. Em Londres, houve ações de incentivo ao transporte compartilhado. Já no Brasil o crescimento do modal até foi observado nas vendas reportadas pelo varejo e no uso para serviços de entrega, mas sem investimento paralelo em infraestrutura necessária. “A segurança viária é fundamental e define como a gente vai se deslocar. Aqui, a implantação acontece muito devagar.”
Segurança pública também é um aspecto considerado importante para a efetividade desses meios, de acordo com os especialistas. Enquete realizada pelo Estadão com cerca de 2,2 mil participantes de todo o País, mostra que 33% das pessoas avaliam que falta ciclovia nas cidades e 30% reclamam de ruas escuras.
As soluções passam por reduzir a velocidade máxima permitida nas vias, além de ampliar a malha para essas alternativas. “Há espaço excessivo para garantir o carro na cidade, ao passo que hoje a gente precisa migrar o olhar para o transporte público e transporte ativo, que são responsáveis pela maioria das viagens”, diz Clarisse.
Para a especialistas, os melhores exemplos podem vir de países vizinhos, cuja realidade é mais parecida com a do Brasil. “Cidade do México, Bogotá, Lima, Quito e Buenos Aires estão entre os lugares que resolveram tirar da prateleira seus planejamentos para daqui a 5 ou 10 anos e falar: ‘É agora que vamos implementar’. Não tiraram só faixa para carro, mas também espaços de estacionamentos. É importante olhar para os nossos ‘hermanos’ e saber que é possível”, diz. “Hoje, o grande risco que a gente corre é o retorno ao carro e à moto na pandemia no País, porque a população passa a perceber esse transporte como a única forma segura.”
Especialistas são unânimes em afirmar que os modais ativos e compartilhados devem estar integrados com o transporte público, como ônibus e metrô. Diretor-presidente da ViaQuatro e ViaMobilidade, Francisco Pierrini lembra que durante o primeiro pico da pandemia, no ano passado, o número de passageiros caiu 80% no Metrô de São Paulo.
“De alguma forma, isso contribuiu para o aumento da mobilidade ativa”, diz. “No Metrô, esse movimento é bem visto pela necessidade de integração de diferentes modais, que facilita muito a vida das pessoas. A gente acredita muito na mobilidade humana. É um modelo que veio para ficar.”
Entre os exemplos, Pierrini relata haver mais de 1,1 mil vagas para bicicletas disponíveis no sistema – embora ainda hoje existam restrições de acesso de ciclistas no horário de pico. Também cita o caso da Estação Pinheiros, na zona oeste da capital, onde há estacionamento para o usuário parar o carro, utilizar o transporte público e voltar depois.
“Isso acontece em todas as Estações, mas é claro que ainda pode melhorar bastante”, afirma o diretor-presidente da concessionária. “A gente tem de caminhar no sentido da smart city, com a mobilidade ativa para que as pessoas cheguem aos sistema troncais, que são os metrôs de alta capacidade. Esse processo já acontece em algumas cidades do mundo – Nova York, Amsterdã, Tóquio, San Francisco – e é um desafio para as operadoras.”
Pierrini acredita, ainda, que a mobilidade vai se transformar no pós-pandemia. “Nada vai ser como já foi”, diz. “Vai mudar em função do alto índice de home office, das adequações de empresas que não têm mais os mesmos espaços físicos de antes, da movimentação das pessoas e das possibilidades de crescimento de sistema de compra. E as empresas devem se adequar. Para a gente, é uma oportunidade de melhorar a rede e a qualidade do serviço.”
Os empreendimentos também devem se preparar para possíveis impactos do crescimento do trabalho remoto, segundo analisa o arquiteto Fernando Vidal, diretor-geral da Perkins&Will. Para ele, a tendência é de um modelo híbrido ganhar espaço, com serviços presenciais e a distância funcionando simultaneamente quando a crise sanitária passar.
“A gente acredita que vai haver uma retomada da volta de espaços de escritório conjuntamente com o home office”, afirma. “Isso é bastante interessante para ter um fluxo de pessoas em tempos diferentes. Talvez a cidade vá se transformar, porque não vai ter todo mundo se locomovendo em um período só.”
De acordo com Vidal, atualmente os empreendimentos empresariais estão mais avançados no debate de mobilidade e interação com a cidade, se comparado com os edifícios residenciais. “Os projetos não são só do muro para dentro”, diz. “Hoje, qualquer prédio corporativo precisa ter pelo menos um belo de um bicicletário e vestiário.”
E mais mudanças devem ocorrer nos próximos anos, segundo analisa. “Em alguns empreendimentos, a gente acredita que o subsolo ou o sobressolo podem ser alterados para moradia. Não faz sentido haver essa quantidade de metros quadrados destinada para estacionamento hoje, se há todo um movimento que aponta para menos carro e mais transporte público e compartilhamento.”