Programa de ônibus ajuda volta às aulas e agrada montadoras

Do Valor Econômico
Foto: Divulgação (Mercedes-Benz do Brasil)

A pequena Marjorie Sofia Ribeiro, de oito anos, retomou ontem uma rotina que não fazia desde 17 de março do ano passado. Por volta das 12h50 ela saiu de Ligeiro, nome da reserva indígena onde mora, e subiu num ônibus amarelo. Cerca de 20 minutos depois, estava na escola. Em regiões rurais como Charrua (RS), onde Marjorie vive, o retorno às aulas presenciais não depende apenas de protocolos de segurança impostos pela pandemia. É preciso ter transporte.

Prestes a completar 15 anos, o Caminho da Escola é um dos raros programas que sobrevivem a mudanças de governos. Junto com bicicletas e lanchas, que transportam alunos em regiões ribeirinhas, o programa voltado a alunos de regiões distantes, de difícil acesso, abrange 5,5 mil municípios e soma quase 57 mil ônibus.

Os fabricantes desses veículos estão tão felizes quanto os estudantes que retornam às aulas presenciais. Normalmente, o programa representa entre 18% e 20% do mercado de ônibus no país. Mas em 2020, quando as vendas em geral despencaram, a participação do Caminho da Escola chegou a 30%, em média, e a até 50% no caso de duas montadoras – Volkswagen e Iveco.

As atenções se concentram, agora, na expectativa da próxima licitação, que deve ocorrer no fim deste mês, segundo Garigham Amarante, diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), vinculado ao MEC e responsável pela liberação dos recursos federais para essas compras. Apesar de a Lei Orçamentária já ter sido publicada, ainda não há “disponibilidade específica” de recursos para o programa do transporte escolar, segundo Amarante.

Em Charrua, a 378 quilômetros de Porto Alegre, não houve nenhuma aula on-line durante a pandemia. O acesso à internet é um conforto desconhecido para a maioria dos 3,1 mil habitantes, dos quais 45% são indígenas. Material didático e tarefas foram levados até a casa de cada um dos 550 alunos que frequentam as três escolas municipais e duas estaduais.

Nem por isso, os motoristas dos nove ônibus que servem ao Caminho da Escola no município ficaram em casa descansando. Coube a eles levar e buscar as tarefas escolares. E, na falta de veículos menores, os próprios ônibus serviram para esse mutirão de ensino a distância sem internet.

A professora Elaine Caldato perdeu as contas de quantas cópias imprimiu ao longo de todos esses meses. Diretora da Escola de Ensino Fundamental Osvaldo Cruz, que atende alunos da região rural e indígenas, ela recebia o material dos professores às segundas e às quartas o enviava aos alunos. Em 32 anos de profissão, Elaine nunca enfrentou tamanho desafio, contou, ao encerrar, aliviada, a jornada de ontem.

Em Charrua, palavra de origem tupi-guarani que significa arado ou instrumento de trabalho, o retorno às aulas será em sistema híbrido. Os alunos se revezarão nas salas de aula, em dias alternados. A turma que começou ontem incluiu os cerca de 80 indígenas que optaram por frequentar uma das escolas municipais. Existe outra dentro da reserva.

Vários alunos caingangues – nome da etnia e da língua falada pelo povo indígena que mora em Ligeiro – voltaram aos ônibus, ontem. Junto com eles, a pedagoga Terezinha Matias, professora do pré-escolar e também indígena.

Outras linhas de coletivos apanharam os não indígenas, que costumam esperar próximos à estrada. “Eles caminham alguns metros; os ônibus chegam bem perto das casas”, afirma Leocir Mezadri, secretário de Educação, Cultura e Turismo de Charrua. Segundo Mezadri, com os ônibus do programa governamental, que começaram a chegar ao município em 2013 por meio de recursos federais, o índice de faltas e de evasão escolar diminuiu sensivelmente.

“O trajeto para a escola sempre foi um desafio para milhões de alunos que moram ou estudam na zona rural. São longas caminhadas, veículos impróprios e alguns passam mais tempo no caminho do que na sala de aula”, afirma Danilo Fetzner, diretor da área de ônibus da Iveco para a América do Sul. A Iveco é umas das maiores fornecedoras do programa, com 8,5 desses veículos em circulação no país. Na última licitação, a empresa ganhou o direito à venda de 1,2 mil. “Essa é uma das iniciativas mais bem-sucedidas do poder público no Brasil”, diz Fetzner.

Os indígenas que voltaram às aulas ontem são crianças quietas, que parecem ter ficado ainda mais retraídas com o isolamento. Um pouco menos tímida que os colegas, Marjorie sorriu e abanou o fotógrafo para tentar aliviar o calor que faz nessa região, que fica em meio a morros e cuja economia é praticamente toda voltada à plantação de soja, milho e trigo e pequenos produtores de gado leiteiro. No terceiro ano do ensino fundamental, a indígena diz que quer ser “doutora” quando crescer e que durante o período em que não pôde ir para a escola “escreveu bastante”.

O grupo de indígenas viajou por uma estrada empoeirada e cheia de declives. Os ônibus são projetados para condições extremas. Têm a plataforma mais elevada e chassi mais robusto. A capacidade é para 29 a 44 passageiros, mas na pandemia é preciso fazer mais viagens por veículo para garantir distanciamento.

O presidente da Volkswagen Caminhões e ônibus, Roberto Cortes, participou, como representante da indústria, das reuniões que levaram à criação do programa, em 2007. “O governo tinha uma ideia social e, com o tempo, o Caminho da Escola tornou-se um programa apartidário”, destaca o executivo, que levou a ideia para Angola. Já faz algum tempo que a Volks exporta os veículos que produz em Resende (RJ) para o país africano, onde o governo reproduziu o projeto.

O programa brasileiro foi inspirado no modelo americano. Nos EUA, o segmento escolar chega a representar volumes quatro vezes maiores do que os ônibus convencionais, segundo o diretor de vendas e marketing Ônibus da Mercedes-Benz, Walter Barbosa. Segundo ele, no Brasil, 60% das vendas por meio do programa são feitas com recursos do governo federal.

Prefeituras ou Estados também podem recorrer a financiamentos. As linhas mais usadas são do BNDES. Alguns prefeitos também recorrem a emendas parlamentares para pressionar a obtenção de recursos federais. Segundo Amarante, do FNDE, desde sua criação, o programa absorveu R$ 7,98 bilhões em recursos do governo federal. Com a verba usada por secretarias estaduais ou municipais, por meio de financiamento, na maioria, o total chega a R$ 11,58 bilhões.

O ônibus escolar pode ser adquirido também por uma empresa privada, segundo o vice-presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Marco Saltini. Mas só por meio do programa o veículo é isento de impostos – 8,10% de PIS e Cofins e 12% a 13% de ICMS (no caso, um acordo entre secretarias de Fazenda dos Estados).

A licitação de 2021 estava programada para ocorrer logo no início do ano. Mas a indústria queixou-se do reajuste de preços proposto pelo governo. Os valores serão redefinidos nas atas, aguardadas para o fim do mês. Saltini diz que espera-se uma licitação próxima de 7 mil unidades. Há grande expectativa também na indústria de carrocerias. Na última licitação, a Marcopolo , maior fornecedora do programa, foi responsável pelas carrocerias de 4,8 mil veículos.

As montadoras mantêm otimismo em relação à continuidade do programa. Trata-se de uma iniciativa voltada a uma causa nobre e que oferece visibilidade política até para quem não participa. Por ser uma venda, em lotes, que leva até um ano e meio para a entrega, às vezes, o político que participou da compra não é o mesmo que aparece na foto da entrega dos ônibus. “É muito difícil matar esse programa; a não ser que a infraestrutura do país tivesse melhorado absurdamente”, diz Saltini.

O secretário de Charrua já começou a providenciar a inscrição da cidade na próxima liberação de recursos para compra de ônibus. Segundo ele, é preciso renovar a frota; alguns veículos estão velhos. Mas o município gaúcho precisa mais do que ônibus. A lista dos charruenses para verba federal inclui material escolar, de informática e esportivo. É bom lembrar que os alunos estão de volta.

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