Artigo: Caos do transporte público pós-covid é algo sabido e programado

Do UOL
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil/Ilustração

O mundo vive uma crise no transporte público na era covid-19. Menos usuários, menores distâncias, transporte individual e desinvestimento são parte de um problema que se acirrou no contexto de pandemia. No Brasil, antigos problemas se aceleram, para além dos que estão colocados desde a origem das cidades brasileiras. A crise econômica, a uberização do trabalho e o empobrecimento da população hoje nos aproximam de um colapso. É o momento de desenhar estratégias urgentes.

As sucessivas opções pelo transporte rodoviário, de carga e de usuários transformaram o Brasil num país dependente de rodovias e incapaz de migrar entre modais sem um grande investimento de longo prazo. Temos hoje um país que 61,1% do transporte de carga vai pelas rodovias, 20,7% passa pelas ferrovias, 13,6% pelo sistema aquaviário e apenas 0,4% pelo transporte aéreo. Numa cidade como o Rio de Janeiro, 38,8% da população transita na cidade usando o transporte rodoviário, ao passo que apenas 2,9% conseguem utilizar o metrô como opção de transporte. Resultado: lotações, modais inadequados à demanda, dificuldade de ajustes intermodais e precarização dos sistemas.

Com uma população majoritariamente pobre e negra, o drama é ainda maior. O preço da terra aumenta as distâncias percorridas e empurram a população pobre para fora dos perímetros centrais e consolidam a lógica do usuário do transporte de massa: quanto maior a distância, mais negros teremos nos transportes de massa e maior a dificuldade de pagamento da bilhetagem.

E é na pandemia, em meio ao aumento do desemprego e da miséria, com diminuição do pagamento do bilhete e gestões estaduais e municipais em déficit crônico, que deveríamos estabelecer novas formas de investimento e financiamento no transporte público. Os fundos de investimento público voltados para o transporte devem ser assumidos como uma realidade, reproduzindo as formas de subsídio pelas cidades afora. Assumir que as atuais concessões são incapazes de cobrir os rombos deixados pela diminuição da locomoção urbana e da pobreza.

Os fundos para o transporte podem ser alimentados por diversas fontes como: impostos sobre veículos particulares; impostos verdes, com aumento de taxa para carros poluentes; investimento em qualidade de estrutura e mudança de combustíveis, com menos custos e menor impacto ambiental, percentuais de tributos preexistentes. É muito comum operações urbanas preverem percentuais para fundos de transporte de novos empreendimentos, para que haja possibilidade de implementação de modais inteligentes no perímetro da operação, transformando grandes áreas ou áreas de menor escala na cidade, como é o caso de Londres ao longo de todo século 20 e início do século 21.

Nesse sentido, há uma pressa enorme em se estabelecer que o “socorro” pedido pelas empresas de transporte público durante a pandemia aconteça, mas a ação está longe de solucionar o problema. A redução da locomoção será uma mudança no pós-pandemia e todas as cidades devem gerar novos planos de mobilidade no novo contexto do trabalho urbano, dimensionando os desafios reais colocados no século 21. A decisão pela qualidade de vida urbana, pela interrupção dos navios negreiros em forma de trem e metrô devem ser a nova tônica dos gestores de transporte, ou esta urbanista articulista continuará afirmando que o caos do transporte é uma barbárie programada. Perpetuar o modelo atual é perpetuar a desigualdade e o caos urbano.

Tainá de Paula – arquiteta

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